Programa da Thoughtworks mostra como engajar as empresas com a equidade racial

O engajamento das empresas com a equidade racial é importante para atrair talentos e incentivar a inovação. O projeto “Enegrecer a Tecnologia”, da ThoughtWorks, mostra como fazer

Por Lizandra Almeida Do Época Negócios

OS DESENVOLVEDORES DANIEL NASCIMENTO E MAURÍCIO MARQUES (FOTO: RAUL SPINASSÉ )

Início de abril. Anoitece, na mais negra das cidades fora da África. Já está tudo pronto, no Instituto Goethe, de Salvador. Localizado no Corredor da Vitória, o bairro mais caro da capital baiana, o prédio amarelo, com arcadas na fachada, destoa de seus vizinhos, construções modernas, altas e imponentes. Os convidados começam a chegar. Em pouco tempo, 50 pessoas circulam pelos jardins do centro cultural. A imensa maioria é de jovens negros. A eles, é dedicado o acontecimento da noite — o Enegrecer Talks, ciclo de palestras sobre tecnologia e diversidade racial no mercado de trabalho. O clima é de descontração.

O evento no instituto soteropolitano encerra um processo, iniciado seis meses antes. Doze candidatos almejam entrar para a equipe da consultoria de software ThoughtWorks (TW). Mas esse é um recrutamento diferente. Não há vagas a serem preenchidas. E a única exigência é que o postulante seja negro. “Queríamos, no mínimo, uma pessoa para cada um de nossos escritórios no Brasil”, diz a publicitária gaúcha Juliana Oliveira, da área de pessoas da TW, em Porto Alegre. “Mas todos os candidatos tinham chance de entrar.”

O Enegrecer Talks faz parte de um projeto maior, o Enegrecer a Tecnologia. Por meio desse programa, a TW busca aumentar a participação de desenvolvedores negros em seus quadros. Contratar e reter programadores já é complicado, devido à disputa sempre acirrada por esses profissionais. Abrir uma via de trabalho para programadores negros é um desafio tão instigante quanto necessário — e urgente.

EXCEÇÃO OS PROFISSIONAIS DE TECNOLOGIA ROSELMA MENDES E GABRIEL BARRETO: RARIDADES NUM SETOR EXCESSIVAMENTE HOMOGÊNEO

DESIGUALDADE PROFUNDA

Completados recentemente, os 130 anos da abolição da escravatura seguem sem reparo. A discrepância entre negros e não negros em postos de médio e alto escalão é abissal. Nas grandes companhias brasileiras, os negros ocupam somente 4,7% dos cargos executivos. Entre os gerentes, eles são 6,3%. Se é ruim para os homens, para as mulheres negras é ainda pior.

As executivas e gerentes aparecem, respectivamente, em 0,4% e 1,6% dos postos. “Se continuar como está, a proporção racial equivalente no quadro de funcionários das grandes empresas só será realidade daqui a 150 anos”, lê-se no relatório final do estudo Black-In. Coordenado pela Santo Caos, consultoria especializada em engajamento, o levantamento é um dos maiores e mais minuciosos já feitos no Brasil sobre como as empresas podem se engajar com a equidade racial. Foram ouvidas 1.798 pessoas — 1.431 profissionais dos mais diversos setores, 256 estudantes, 49 profissionais de RH, 30 gestores e 32 estudiosos do assunto. Do total, 69% eram negros.

Fundada há 20 anos em Chicago, nos Estados Unidos, a TW chegou ao Brasil em 2009. Atualmente, os escritórios de Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e São Paulo equivalem a quase 10% de todas as sucursais da empresa, presente em 14 países.

Ao todo, são 4,5 mil colaboradores; 603 brasileiros. Os 178 funcionários negros da TW equivalem a 29,5% do quadro de pessoal. Das novas contratações feitas desde o início do ano, 47,8% foram de profissionais negros — ante os 13% registrados ao longo de todo o ano passado. Entre eles, estão a baiana Roselma Mendes e o pernambucano Gabriel Barreto.

Desenvolvedores, ambos estão na TW desde 2015. Roselma, inclusive, já participou do Desenvolve Índia. Esse programa prevê um período de imersão na empresa, no escritório indiano ou no chinês. Na TW, Gabriel consegue conciliar no trabalho duas de suas principais áreas de interesse — tecnologia e humanidades. Como consultor de software, ele vive em contato com clientes.

Racial, de gênero ou de orientação sexual, não importa o tipo, a diversidade tem sido percebida como vital para o novo mundo dos negócios. “Como consultoria, a gente faz produtos para atender às necessidades de um público”, diz Juliana Oliveira, da TW. “Precisamos, portanto, ter isso refletido na nossa equipe. Se a gente tem um perfil homogêneo, não temos inovação.

Essa diversidade de olhares, referências, backgrounds culturais é importante para o negócio.” A pesquisa Black-In corrobora a tese de Juliana. No ambiente de trabalho, a equidade racial facilita o comprometimento dos funcionários com a empresa, fortalece a imagem institucional da companhia, atrai e retém talentos, aumenta a produtividade e a lucratividade, facilita a criatividade, promove a inovação e inibe a rotatividade.

“Apoiar a causa da equidade racial é uma obrigação e uma necessidade para todo executivo e executiva com visão social e econômica consistente”, defende Caroline Cintra,  diretora-presidente da TW.

TRABALHO DE FORMIGUINHA

Há de se levar em conta, ainda, o poder de consumo da população negra. No Brasil, ela movimenta R$ 1,6 trilhão por ano — o equivalente ao 17º mercado consumidor do mundo. Não é pouca coisa. Ainda assim, segundo o Instituto Ethos, apenas 3,4% das 500 maiores companhias brasileiras têm programas para aumentar a participação dos negros em cargos mais altos.

A exemplo da TW, PayPal, Aegea Saneamento e Bayer já realizaram ações afirmativas para diversificar suas lideranças e trazer mais negros para os postos de gestão. “Quando entramos em contato com as empresas e apresentamos os dados, as pessoas ficam em choque”, conta a publicitária Luana Génot, fundadora e diretora do Instituto Identidades do Brasil. “Nosso trabalho é de formiguinha, empresa por empresa, na tentativa de reverter séculos de disparidade.”

RECRUTAMENTO PARA JULIANA OLIVEIRA, DA TW, NÃO HÁ INOVAÇÃO SEM DIVERSIDADE. “É IMPORTANTE PARA O NEGÓCIO”, DIZ ELA

Considerando-se os esforços da TW na promoção da equidade de gênero — em relação ao programa de diversidade racial —, os prognósticos são os melhores. Quando a empresa aportou em terras brasileiras, o sexo feminino representava pouco mais de 30% do total de funcionários. Hoje, as mulheres somam 44% da equipe — um índice superior aos 30% da média nacional. Entre elas, duas em postos equivalentes aos de CEO, Caroline Cintra e Gabriela Guerra.

No dia seguinte ao Enegrecer Talks, os 12 candidatos pré-selecionados passaram por quatro entrevistas individuais, realizadas sempre por dois colaboradores negros da TW. Nesses encontros, eles foram avaliados basicamente em dois quesitos: cultura, o quão alinhados demonstravam estar com os valores da empresa; e conhecimento técnico, que, definitivamente, não era o preponderante. Depois da maratona de conversas, dez foram escolhidos.

O soteropolitano Daniel Conceição do Nascimento, de 33 anos, foi um deles. Sua história em busca de estudo e trabalho é muito parecida com a de muitos jovens negros no Brasil. Por causa do serviço militar obrigatório, ele adiou a entrada na faculdade. Ao deixar o exército, porém, teve de trabalhar para ajudar no sustento da família.

Em 2010, apenas, Daniel conseguiu prestar vestibular para ciência da computação, na Universidade Federal da Bahia. Passou. Hoje, como um dos selecionados pela TW, não poderia estar mais entusiasmado.

“Depois que o processo começou, eu já estava tão alinhado com a cultura da empresa que não importava se seria chamado para o cargo de motoboy ou o de diretor”, conta ele. “A etapa de recrutamento não foi uma seleção, mas uma celebração.

” Ter funcionários verdadeiramente envolvidos e identificados com o trabalho, para as empresas, é como ter ouro nas mãos. E, em um ambiente de equidade racial, os profissionais (negros e não negros) tendem a ser mais engajados, mostra o estudo Black-In.

Daniel não conhecia a TW. Foi apresentado à empresa pelo amigo Maurício Marques Moreira. A princípio, Daniel não se interessou pelo processo de seleção em Salvador.

“Quando li, no entanto, sobre a postura da empresa em relação à diversidade racial, minha opinião mudou completamente”, diz. “Nunca participei de nada parecido.

Estive sempre muito à vontade, desde a primeira entrevista pela internet.” Os processos seletivos tradicionais costumam ser impessoais e técnicos demais. A contar também para a boa impressão causada pela TW em Daniel, o fato de que os recrutadores eram negros.

SENTIMENTO DE ACOLHIMENTO

Negros entrevistando negros também chamou a atenção de Poliana Dias da Silva, de 29 anos, outra candidata vitoriosa na seleção soteropolitana da TW. “As palestras foram muito impactantes. Ver esse movimento de pessoas negras em um país tão desigual, e encontrar pessoas negras me acolhendo e me entrevistando me deixa muito feliz.”

Nascida em Araguanã, no Tocantins, ela se diz uma apaixonada por tecnologia desde os 12 anos. Aos 16, foi morar sozinha em Araguaína, para fazer faculdade. Formada, recebeu a proposta de trabalho de uma empresa cearense. E lá foi a jovem viver em Fortaleza. Em breve, Poliana vai para o escritório paulista da TW.

Oito em cada dez estudantes negros acham importante ter, ao longo da carreira, líderes da mesma raça. É como um espelho a lhes mostrar ser possível vencer os limites impostos pelo racismo e avançar profissionalmente.

“Precisa trazer representatividade, para que os jovens negros passem a se enxergar em uma vida diferente. A presença de um entrevistador negro, uma CEO negra, mostra para os jovens de periferia que é possível”, defende Lisiane Lemos, cofundadora da ONG Rede de Profissionais Negros, no relatório da pesquisa da Santo Caos. Gaúcha, aos 27 anos Lisiane foi eleita, em 2017, pela revista americana Forbes, como um dos 91 jovens de mais impacto no país.

ASCENÇÃO PROFISSIONAL

As discussões sobre os negros e o mercado de trabalho entraram na pauta da TW há cinco anos, quando a empresa promoveu a semana da igualdade racial. A ação motivou a criação do Quilombolas, grupo permanente de debate sobre questões de raça.

“Quando começamos a incluir pessoas que normalmente não fazem parte dos espaços de tecnologia, percebemos que o ambiente precisava ser mais diverso”, diz a pernambucana Renata Gusmão, diretora de Justiça Social da TW. “O mundo da tecnologia ainda é muito dominado por homens brancos.”

Se é assim na área de tecnologia, que, segundo o estudo Black-In, lidera o ranking das áreas da economia que mais contratam negros, imagine como deve ser nos setores da mineração, da pesca e pecuária, dos seguros…

“Se a gente não for intencional em ser diverso, isso não acontece naturalmente”, defende Renata Gusmão. Ao que faz coro Gabriela Guerra, diretora-presidente da TW:  “Muitas ações podem ser feitas — campanhas de recrutamento, desenvolvimento de lideranças, códigos de conduta e fortalecimento de um ambiente de aprendizado e desconstrução”.

A partir de parcerias firmadas com as ONGs Afroeducação, Olabi e Instituto Identidades do Brasil, a TW passou a oferecer a seus colaboradores treinamento formativo sobre a questão racial no Brasil. Daí nasceu a ideia do recrutamento específico de jovens negros.

“O Enegrecer a Tecnologia tem também o objetivo de compartilhar o conhecimento”, diz Juliana Oliveira. “Existe uma produção científica, tecnológica e cultural da população negra que é invisível.”

Mas restringir o acesso a um processo de seleção a negros apenas não configura o chamado racismo reverso? Não. Em primeiro lugar, argumentam os ativistas, racismo reverso não existe. Racismo pressupõe opressão e opressão envolve sempre o poder de um grupo sobre outro; de uma pessoa sobre outra. “Por não haver uma estrutura que negue esse poder aos não negros, não tem como existir racismo reverso”, diz Janaina Damasceno, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no documento Black-In. Do ponto de vista legal, não há empecilho.

Sobretudo por se tratar de uma iniciativa pontual. “Assim como a lei que estabeleceu as cotas, essa ação é uma medida específica, com prazo determinado. No caso da Lei 12.711 de 2012,  em dez anos ela passará por uma avaliação e uma revisão”, diz a advogada Juliana Maia Victoriano, integrante do coletivo Justiça Negra Luiz Gama, do Rio de Janeiro. “O objetivo é corrigir distorções e por isso o prazo é determinado.”

A equidade racial não impõe apenas o desafio da chegada dos negros aos postos mais altos. Igualmente importante é desenvolver mecanismos que proporcionem a eles chances iguais de crescimento profissional. Na pesquisa Black-In, para 90% dos profissionais de RH, os processos de ascensão não são os mesmos para negros e não negros.

Diz o antropólogo Pedro Jaime, no estudo da Santo Caos: “Se a empresa não tem culpa de um preconceito enraizado na cabeça de seus funcionários, ela tem parcela de responsabilidade por repensar o mapa mental desses funcionários, porque ele também vai interferir na relação com o cliente, na relação com o colega de trabalho”.

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