Manhã de sábado. Crianças, adolescentes, adultos de vários lugares do Município de Maracanaú começam a chegar na escola EMEIEF Construindo o Saber. São estudantes de nossa escola, de outras escolas de Ensino Fundamental e Médio, universitários, familiares dos estudantes, pessoas convidadas que trabalham ou desenvolvem ações na área de africanidades e resistência, funcionários da escola e técnicos da Secretaria de Educação de Maracanaú.
Por Elonalva Silva Costa enviado para o Portal Geledés
Não é um sábado letivo. Mas todas as pessoas se fazem presente. Dividem as atividades. Umas organizam as cadeiras no pátio, outras testam o som, escolhem duas ou três adolescentes para receberem e colherem asassinaturas dos presentes e recepcionar quem chega pela primeira vez. Organizam as mesas de brindes e outras preparam o lanche.
Oito da manhã. Começa uma encontro que já acontece mensalmente desde Junho de 2015. Cerca de cem pessoas ocupam o pátio da escola. É o projeto Identidade Étnica Cacheadas, Crespas e Trançadas de Maracanaú. Onde crianças e adolescentes são protagonistas em ações contra o racismo. Juntos numa voz que ecoa contra o racismo.
As atividades vão desde palestras, exposição fotográfica, rodas de conversas, apresentação de poesia construída pelos membros do grupo ou poesia de algum autor que trate o tema de africanidades e resistência, apresentações de dança, canções, debates e exposição de vivências.
Tais atividades vem trazendo para estas crianças e adolescentes a percepção da diversidade e beleza das histórias africanas, das experiências sociais de luta e resistência, enfim, valorizando-as, atingindo sua autoafirmação étnica que é a base principal deste projeto que tem como objetivos específicos: despertar na criança e adolescente a vontade de contar suas próprias experiências, fazendo-os descobrir-se valioso(a), estimulando-o(a) a resgatar sua autoestima, dando-lhe argumentos e segurança para discutir temas como racismo e religiosidade; além de despertar uma visão crítica para que a criança cresça percebendo o processo de exploração dos povos africanos e suas consequências, podendo contextualizar, historicamente, situações sociais atuais e ter embasamento para discutir questões que atualmente provocam bastante polêmica, como é o caso das cotas raciais e saber exigir seus direitos constitucionais de igualdade e respeito.
A EMEIEF Construindo o Saber está localizada em área urbana.. O Município de Maracanaú, qual a escola está inserida, tem protagonizado uma ampla discussão em torno das questões relacionadas ao ensino das relações étnico-raciais. O estudo das Leis 10.639/03 e 11.645/08 promoveu uma série de iniciativas voltadas para a afirmação da diversidade cultural, superação do racismo e das desigualdades raciais no município, como forma de introduzir no currículo escolar práticas afirmativas que valorizam a história, a memória e a identidade de crianças, adolescentes, jovens e adultos negros.
Em novembro, mês que se acentua a importância de luta e valorização da história afro-brasileira, as escolas têm a oportunidade de apresentar os trabalhos que são desenvolvidos ao longo do ano, através do Festival Afro Arte, promovido pela Secretaria de Educação do Maracanaú. O evento enfatiza as expressões culturais afro-brasileiras no ambiente escolar. Nosso projeto se encaixou dentro das atividades desenvolvidas para o Afro Arte e se tornou permanente dentro do calendário escolar.
A ideia de formar o grupo de estudos surgiu num debate em sala de aula em 2015 quando uma aluna do sétimo ano expôs uma situação de racismo em que fora vítima. Vários estudantes também expuseram situações vividas ou presenciadas por eles dentro e fora da escola.
Surgiu neste momento a indagação: Qual o papel do Educador diante de tais atitudes? O que a escola estava realizando efetivamente para interpelar tais situações racistas no âmbito escolar? Foi ouvindo seus relatos que, como Educadora, decidi formar um grupo para discutir questões referentes a identidade étnica e junto com os estudantes e outros Educadores desenvolvermos ações contra o racismo. Inicialmente quatorze adolescentes prontamente se comprometeram a fazer parte do grupo. Assim foi realizada a primeira reunião.
O trabalho de formação do grupo foi divido em etapas. Como temos o objetivo de desenvolvermos em nossos/nossas estudantes o sentimento de empoderamento diante da sociedade fez-se necessário no primeiro momento formar um grupo de estudos onde construiríamos um aparato teórico que fortaleceria a criticidade e autoestima dos envolvidos(as) no projeto. Discutindo conceitos como identidade étnica, racismo, empoderamento, tendo contato com textos centrados no assunto do projeto os(as) estudantes enriqueceram-se de argumentos e puderam discutir primeiramente em grupo e depois com outras pessoas que se inteiraram do projeto de uma forma mais consciente.
Posteriormente, para dar visibilidade ao projeto foi criado um grupo nas redes sociais (Pessoas Cacheadas, Crespas e Trançadas do Maracanaú) onde as alunas puderam convidar outros adolescentes para discutirem a questão de identidade racial, além de trocarem experiências de
superação dos preconceitos, aconselharem quem ainda sofria preconceito e trocarem dicas estéticas. Desta forma o projeto foi ampliado e alunos e alunas de outras escolas do Maracanaú puderam fazer parte do projeto. Atualmente o grupo do projeto nas redes sociais têm quase mil membros pessoas. (https://www.facebook.com/groups/1640584529513376/)
Com apoio das nossas Gestoras Escolares, Silvana Barbosa, Edvânia Lopes, Norma Oliveira e
Adriana Souza entramos em contato com pessoas que de alguma forma trabalhavam com a questão
das africanidades para que estas pudessem visitar o grupo e dialogar sobre os diversos assuntos
relacionados ao tema.
Profissionais da educação, escritores, pesquisadores, militantes, profissionais liberais e técnicos da Educação do Município participaram de nossas reuniões. Os(as) adolescentes do grupo também passaram a convidar pessoas para dialogar conosco enriquecendo nossa luta contra o racismo e outras formas de opressão.
A cada reunião percebíamos que o número de participantes aumentava e mais pessoas se dispunham a colaborar com nosso projeto. Sentimo-nos seguros para desenvolvermos dentro do grupo atividades que dessem mais visibilidade ao nosso trabalho.
Nestes mais de dois anos de ações contra o racismo dois livros reuniram o resultado dos trabalhos do grupo. O primeiro livro, emocionante. Traz relatos sobre as situações sofridas pelas meninas que formaram inicialmente o projeto. Uma delas narrou a violência que sofreu quando estudantes a atacaram com papel higiênico molhado na saída da escola “ Eu encostei no muro. Coloquei as mãos nos olhos e esperei eles terminarem.
Só ouvia gargalhadas e aquilo parece que demorou a eternidade. Naquele ano alisei meu cabelo e mudei de escola. A dor não passava”. Já no segundo livro a mesma estudante já narra sua superação, seu empoderamento e sua vontade de ajudar outras pessoas que sofrem racismo. E explicita como o grupo a ajudou neste processo de conquistar sua autoestima.
O projeto produziu um curta metragem gravado e editado pela Professora de Artes da escola e
filmado no laboratório de informática que foi premiado no Festival de Africanidades do Município(Afro Artes) onde a partir da leitura do livro O Cabelo de Lelê de Valéria Belém as alunas
iam dando a definição de empoderamento enquanto dividiam suas histórias.
Uma exposição com o tema Mulheres Inspiradoras foi realizada em 2016. Houve o envolvimento de todas as salas da EMEIEF Construindo o Saber de ambos os turnos. Ao todo 32 mulheres inspiradoras foram homenageadas. Para cada mulher inspiradora estudada foram produzidas pesquisas, homenagens através de canções, danças, poesias e banners. O grupo teve o privilégio de conhecer pessoalmente alguma destas mulheres inspiradoras que visitaram nosso projeto.
Do grupo de estudos Identidade Étnica Pessoas Cacheadas , Crespas e Trançadas um banner exaltando a beleza das alunas participantes do projeto (exposto no pátio da escola) e um espetáculo
de dança chamado Marcha das Mulheres Negras também foram produzidos. O espetáculo recebeu
convites e se apresentou no Teatro do Município – Dorian Sampaio em novembro de 2016, na Praça da Estação no evento em homenagem ao mês da mulher realizado pela Prefeitura de Maracanaú em março de 2017 e no evento Semana da Juventude ocorrido no mês de agosto.
Em 2017 uma exposição fotográfica com o tema Florescer captou através da lente da fotógrafa e membro do grupo Emilly Mascarenhas a beleza de quarenta membros do projeto. Muitas destas pessoas fizeram parte do ensaio e produção do banner em 2015. Emocionante perceber através da expressão delas nas fotos o quanto elas estavam transformadas. São crianças e adolescentes amadurecidos e cientes do seu papel social na desconstrução do racismo. O projeto vêm formando multiplicadores, pois muitos estudantes que começaram como alunos e alunas de nossa escola hoje estão em outros ambientes educacionais do Ensino Médio levando o discurso empoderador, trazendo mais jovens para nossas reuniões e colaborando com as atividades do grupo.
A reunião, que acontece mensalmente, se divide em vários momentos. Sempre há uma palestra
a partir do tema Identidade Étnica. Muitas vezes os palestrantes são pessoas convidadas a dialogar
com o grupo (militantes do Movimento Negro, Educadores, profissionais liberais, modelos,
psicopedagogos etc).
Depois há uma roda de conversa onde os(as) participantes do grupo relatam suas experiências pessoais. São momentos emocionantes de histórias de superação e empoderamento. Há um momento de descontração quando é servido lanche e quando ocorrem sorteios. Vale salientar que para realização das reuniões a escola disponibiliza o espaço, mas toda produção de banners, livros, lanches, objetos para sorteio é de responsabilidade da comunidade escolar que realiza eventos como rifas e brechós. É um projeto, como repete Silvana Barbosa, Gestora Geral, que nasceu no chão da sala, foi para o pátio da escola e atualmente abrange toda uma comunidade.
As crianças e adolescentes são protagonistas e com passos firmes vão transformando a sociedade em que vivem. Ver o grupo formado por crianças e adolescentes crescer, vê-los empoderados e caminhando seguros, tomando as rédeas de ações tão enfáticas contra o racismo traz para nós, Educadores, uma sensação de trabalho realizado. Nossa vontade é compartilhar com outras escolas a nossa experiência e que novos grupos como o Projeto Identidade Étnica Cacheadas, Crespas e Trançadas de Maracanaú surjam em outros lugares formando uma rede contra o racismo. Estamos abertos ao diálogo para formar uma rede colaborativa de combate ao racismo nas escolas.
** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.