Sou uma mulher negra e essa é a coisa que mais me orgulho. Me reconheço, resisto e existo como uma mulher negra. Mas nem sempre foi assim.
Por Ana Luiza Guimarães Pereira enviado para o Portal Geledés
O meu ensino fundamental foi realizado em escola particular, na periferia onde moro. Minha mãe sempre fez questão disso e se virou em mil pra que tal coisa acontecesse. Pois bem, eu tinha 12 anos, estudava em uma escola particular e era uma das únicas alunas negras da minha turma (Re)existiam eu e mais uma outra menina em sala de aula.
Eu demorei muito tempo para cair nas redes dos padrões de beleza racistas. Até os 12 meus cabelos, por exemplo, não eram alisados. Isso potencializava muito as piadas racistas da turma que por diversas vezes eram minimizadas pelos próprios professores. Racismo era/é uma palavra proibida de ser utilizada quando o que está em questão é denuncia-lo dentro das instituições de ensino.
O alvo da parte mais dura do racismo era eu, a outra menina descobriu logo cedo que se juntar com a branquitude era um jeito de pelo menos fingir que não acontecia com ela também, afinal eram todos “amigos”. A verdade é que pra fugir das dores do racismo vendia-se até a alma, o problema disso é que a branquitude cobra e a cobrança vem com juros insustentáveis.
Eu, por outro lado, mantive minha alma comigo e isso irritava os brancos. A chibata então começou a pesar cada dia mais. Eu fui eleita a mais feia da turma, as piadas se intensificaram, o isolamento também. É desde de pequena que a gente vai tomando consciência da solidão. Eu me sentia só.
Comecei então a me dedicar mais aos estudos, fui me tornando cada vez melhor, cada bimestre eu me destacava mais. Não preciso dizer o que a branquitude achou disso né?! a mão pesou dessa vez como nunca.
Um dia, após uma festinha de colegas de turma, fui cercada por algumas alunas. Elas me diziam que eu fedia. “Minha mãe disse que isso é porque ela é preta, eles tem o cheiro forte mesmo” dizia uma e o restante concordava. Fui para casa arrasada, chorei horrores. Odiei cada traço meu, minha cor, meu cabelo. Assimilei aquilo e passei a me ver como uma pessoa repugnante.
Hoje tenho 20 anos, sou militante negra e pesquisadora. Mesmo tendo desconstruído muita coisa
isso ainda me bate, eu passo desodorante a cada ida ao banheiro. Já tive diversas alergias por isso.
Parece que essa situação fica sempre à beira de se repetir.
As crianças brancas são ensinadas a segurar o chicote e a pesar a mão nas batidas. O chicote é posto
por adultos em uma espécie de herança racista. Ninguém tira, ninguém ensina, e nós desde pequenos vamos apanhando e sofrendo com isso.
Ainda enxergamos o racismo como sendo apenas a ofensa, deixamos de lado as pequenas agressões
do dia-a- dia, agressões essas que são em sua maioria feitas dentro da escola e que vão nos detonando por dentro desde pequenos. Do micro ao macro o racismo está presente nos machucando, as vezes de tal forma que fica difícil se recuperar.
Precisamos urgentemente falar das experiências racistas que nossas crianças negras passam e de
como isso interfere na sua construção como negro (a). Precisamos ensina-las a se amar e precisamos ensinar também as crianças brancas a abaixar o chicote do racismo. Cada ponto por menor que seja será usado contra nós pela branquitude.
Eu tenho 20 anos e essa ferida não cura, minha mãe tem 50 e existem feridas nela que também nunca se fecharam. Não podemos deixar que crianças negras continuem a enfrentar isso.
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