Quantas professoras negras eu já tive? Foi uma questão que me indaguei quando havia acabado de ser selecionada como professora substituta na Universidade Federal do Acre – Ufac, cargo este que ocupei no período de 2018 a meados de 2020. Percebi a invisibilidade de mulheres negras ocupando espaços na docência universitária, e a presença maior destas trabalhando em empresas terceirizadas nos setores de limpeza das instituições.
Quanto à inserção maior de mulheres negras nos empregos terceirizados, ou de babás e empregadas domésticas, é importante “[…] problematizar o porquê de tais lugares ainda serem os mais comuns ou naturais para mulheres de pertencimento étnico racial não branco […] (EUCLIDES, 2017, p. 44-45).
A resposta para essa indagação é porque a raça é uma categoria que está presente nos modos de organização social. E não é sobre o ponto de vista biológico que falo, mas sobre uma perspectiva política, tendo haver com relações de poder (EUCLIDES, 2017). Todos os discursos e práticas são racializados, ainda que as instituições insistam em reafirmar a existência de uma suposta neutralidade.
O racismo nos fere diariamente, e quando as opressões de gênero e raça se intersectam, as mulheres negras são as mais afetadas. Nós, mulheres negras, desde muito cedo, somos vistas como outsiders (COLLINS, 2016), isto é, forasteiras de dentro (RIBEIRO, 2017), que significa sermos tratadas como outras (KILOMBA, 2019), e ainda que venhamos a ocupar espaços de poder e tomada de decisão, as discriminações continuarão presentes em nosso cotidiano.
Porém, o racismo é um crime tão estratégico, que na maioria das vezes, não conseguimos visualizar diretamente essas opressões raciais e de gênero em nós sobrepostas (CRENSHAW, 2002), podendo levar anos para ser percebido e também enfrentado.
Sou uma mulher negra, periférica, migrante e professora. Nasci em Volta Redonda, mas migrei para o estado do Acre há sete anos, onde mais de setenta porcento da população se autodeclara negra, porém o colorismo e a não compreensão aprofundada sobre as questões raciais nos estabelecimentos escolares, faz com que muitos não compreendam que o ser pardo, é se autodeclarar negro, havendo poucas produções sobre a temática e certa invisibilidade das negritudes acreanas no imaginário social.
Apesar disso, foi quando ingressei na universidade no interior do Acre em 2014, que tive o contato com uma disciplina na graduação chamada Educação para as relações étnico-raciais, repercutindo no meu despertar em relação a população negra, e no conhecimento da Lei 10.639/03, que traz a obrigatoriedade de se trabalhar a história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares.
A alegria tomou conta de mim quando conheci aquela legislação. Sentimentos de euforia e de sede por mais conhecimentos sobre meu povo foram despertados. O processo de se ver nos textos trouxe a tona conexões ancestrais transatlânticas, que me fizeram compreender melhor quem eu sou, de onde vim, onde estou e onde quero chegar.
A partir dali “[…] lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão, minhas características étnicas […] (FANON, 2008, p. 105), passando de objeto para sujeita de modo gradativo. Estilhaçar as máscaras do silenciamento (RIBEIRO, 2017) é um processo doloroso, não imediato, mas que nos auxilia a nos reconhecermos como pessoas que têm suas próprias vozes, histórias, cujos corpos também são protagonistas do contexto ao qual fazem parte.
Essas reflexões retomam a questão inicial sobre quantas professoras negras já tive. Na educação básica recordo-me nitidamente de duas, já no Ensino Superior, lembro-me de três professoras pardas, mas que, a priori, não consegui as identificar como negras, devido às poucas compreensões que tinha sobre o que é ser negro no Brasil. Quando entrei como substituta, muitos de meus alunos diziam que eu era a única docente negra que eles haviam tido, o que me trouxe sensações de incômodo e solidão.
Estava cursando o mestrado em educação na época, e todos esses questionamentos conduziram-me na construção de minha dissertação de mestrado sobre: as trajetórias das professoras negras dos cursos de formação de professores da Ufac (SILVA, 2019). Direcionei-me apenas as que estavam atuando no período de 2018 a 2019 nos cursos de licenciatura, englobando também as substitutas, assim, consegui encontrar onze professoras negras naquele período, sendo que as duas mais retintas eram substitutas na referida instituição.
As narrativas ali enunciadas fortaleceram-me de tal modo que autoafirmei ainda mais minha negritude, redescobrindo-me de modo autêntico, na primeira pessoa do singular e também do plural. Amizades foram feitas com algumas docentes, laços construídos, e com vista a alcançar um empoderamento a nível coletivo, surgiu o projeto Rede Mulherações, pensado de modo coletivo, a qual integro com mais duas professoras negras, visando contribuir com a preparação de mulheres negras, indígenas e afroindígenas nos seus ingressos em cursos de mestrado e doutorado. Queremos uma maior representatividade de corpos negros e indígenas ocupando os espaços da pós-graduação, e posteriormente, da docência universitária, enegrecendo não apenas as fronteiras físicas, como também as narrativas, saberes e conhecimentos produzidos nas instituições educativas.
Auxiliar mais mulheres negras e indígenas que queiram adentrar no espaço universitário, é o que a Rede Mulherações propõe. Além desse objetivo, eu, enquanto mulher negra, anseio que minhas escritas transcendam fronteiras e atravessem o tempo. Que eu possa continuar a trilhar minha trajetória e encontrar mais professoras negras nos espaços de poder e tomada de decisão.
REFERENCIAS:
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei 10.639, 3 de Janeiro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm> Acesso em 2º de Agosto de 2019.
COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado. v. 31, n. 1, 2016.
COLLINS, Patricia Hill. Epistemologia feminista negra. In: COSTA, Bernardino Joaze; TORRES, Maldonado Nelson; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
CRENSHAW. Kimberle. A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. Universidade Federal de Santa Catarina, Revista Estudos feministas, 2002.
EUCLIDES, Maria Simone. Mulheres negras, doutoras, teóricas e professoras universitárias: desafios e conquistas, Tese (doutorado), Universidade Federal do Ceará, 2017.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó. Rio de Janeiro, 2019.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
SILVA, Sulamita Rosa. Trajetórias de professoras negras dos cursos de formação de professores da UFAC/Campus Rio Branco. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Acre, 2019.
MINIBIOGRAFIA:
Sulamita Rosa da Silva é licenciada em Pedagogia e Mestra em educação pela Universidade Federal do Acre – Ufac. Atuou como professora substituta no período de dois anos na Ufac. É pesquisadora do Núcleo de estudos afro-brasileiros e indígenas da Ufac. Apoiada pelo Programa de aceleração de lideranças femininas negras: Marielle Franco. Líder da Rede Mulherações- Rede de Formações para Negras, Afroindígenas e Indígenas do Acre. Pesquisa sobre gênero e raça no processo educativo.
Rede social no instagram: *@rosasulamita*
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.