Quanto vale ou é por quilo sua escrita? O que a gente não diz a academia nos adoece

Se a escritora negra Carolina Maria de Jesus fosse examinada por uma banca de defesa de tese, cuja composição estivesse ancorada ao rigor normalista e eurocêntrico do pensamento ocidental hegemônico, certamente ela não receberia o título de Doutora. 

Se a personagem Ponciá Vicêncio, criada pela escritora negra Conceição Evaristo, soubesse que sua frase “preciso autorizar o texto da própria vida” (EVARISTO, 2003, p.127) não dialoga com os pares acadêmicos, certamente sua história não seria validada para estar escrita na primeira pessoa do singular de uma tese de doutorado. 

Se a filósofa negra Sueli Carneiro não tivesse orì (“cabeça”) desperto para saber o valor da coroa que carrega em si como odù (“missão”, “caminhos”) certamente não teria a força que teve para concluir sua tese e se tornar doutora.

Integrar o campo acadêmico em um contexto originário de pensamento social formado por elites intelectuais, cuja dimensão sociocultural e econômica vem da própria história desigual e combinada que ergueu o nosso Brasil, é o mesmo que percorrer campos de disputa e segregação acionados por marcadores sociais da diferença. 

Nessa geopolítica acadêmica um(a) intelectual negro(a) será, em algum momento, cerceado(a) pelas próprias cercas epistêmicas de pensar, produzir e, sobretudo, se posicionar. 

O preço que se paga por tentar balançar ou cortar esses arames, que delimitam simbolicamente o saber fazer de um conhecimento que vai na contra hegemonia dessa estrutura interseccional muito bem estabelecida nos seus modus operandi, é o valor dos efeitos (ir)reparáveis do epistemicídio. 

Por isso tende a ocorrer por parte das pessoas negras a aceitação e a adequação do que se deve produzir, dizer e escrever. A continuação de corpos dóceis para a pesquisa e uma higienização das palavras, silenciando uma subjetividade em estágio de fertilidade. 

Essa não estrumação do conhecimento para as pessoas negras se assemelha a ideologia estéril, discriminatória e não humana, que secularmente foi produzida, validada e disseminada como sendo a verdade, sobre ser negra(o) no Brasil – “descoberto” por Cabral.  

Resgatar as memórias de luta dos nossos povos pretos é combustível de uso diário para seguir adiante nesse confronto de velejo de apagamento de narrativas que ocorre desde os navios negreiros. Sigo minha embarcação apreendendo não o que foi dito sobre mim, mas o que o meu corpo negro ancestral diz, e se funda, sobre a minha história. 

Referência bibliográfica

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.

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