“O conceito de beleza é pessoal” e “não se relacionar com mulheres negras não é racismo pois ninguém manda no amor” são algumas das teses que a pesquisadora e feminista Djamila Ribeiro desconstrói
Por Por Djamila Ribeiro No Revista Fórum
1. “Você tem que aceitar opiniões diferentes das suas.”
Errado! Se você é palmeirense e acha que o Corinthians é pior, tudo bem, posso aceitar isso. Se você prefere carne cozida sem cenoura. OK. Mas dizer que beleza é uma questão de opinião, não, fofo. Não mesmo! Afirmar que é “normal” mulheres negras serem consideradas feias. Não!!!Cansei de ouvir: “Nossa, você é uma negra bonita” (com ar de surpresa) ou “Você é a negra mais bonita que conheço!”
Porque, claro, negras são feias por natureza. Eu ser bonita é um fenômeno que só acontece em anos bissextos. Ninguém diz que uma mulher branca é uma “branca bonita”. Dizem apenas que ela é “bonita”. Uma mulher negra só pode ser bonita entre outras negras. Gostam de hierarquizar nossa beleza. Ora, por que eu não posso ser simplesmente uma mulher bonita? Tem a clássica: “Você dá de dez a zero em muita branca por aí”. Nossa,que elogio! Sabe como é… Mulheres negras são feias naturalmente e, as brancas, bonitas naturalmente. Apenas quando cai uma chuva de meteoros, uma negra surge de um planeta distante e consegue o feito inédito de ser mais bonita do que algumas brancas.
Certa vez, na faculdade, alguém me disse que eu era linda, inteligente e que só faltava ser loira para ser um arraso. Pobre de mim. “Vá nascer de novo, garota!”
2. “Ah, mas esse negócio de beleza é pessoal, eu tenho o direito de achar a Lupita (Nyongo) feia.”
Pela milésima vez: gostos são construções. Nós somos ensinados a achar o que é belo e o que não é. Nossos olhares foram, e são, condicionados a isso. Há um padrão imposto do que é “agradável”. Tudo o que não se encaixa nessa norma é visto como feio, desviante. Abra uma revista de moda. Quantas mulheres negras há? Quantas gordas? O racismo tem um papel preponderante na construção desses padrões. A “beleza negra” é estereotipada e estigmatizada.
Eu, quando criança, era super zoada na escola. Adivinhe o porquê? Por ser negra… Ter o cabelo crespo… Na festa junina nenhum menino queria dançar comigo — diziam isso na minha cara. Eu sempre encabeçava a lista das mais feias. Por que raios aquelas crianças me achavam feia? Eu era uma menina linda, inteligente e divertida! Ah, eles me xingavam e não dançavam comigo, porque, óbviamente, crianças de 7 anos têm gostos pessoais bem desenvolvidos.
Eu feia? Fala sério, olha pra mim!
3. “Não gostar de se relacionar com mulheres negras não tem nada a ver com racismo, ninguém manda no amor.”
Ninguém manda no amor, é verdade. Mas o amor nunca escolhe as negras. Engraçado. Segundo pesquisa do IBGE, mulheres negras são as que menos se casam, são a maioria das mães solteiras. Inclusive, há trabalhos acadêmicos que revelam a solidão afetiva da mulher negra.
Se o racismo tem um papel preponderante na construção dos padrões de beleza, consequentemente, terá na construção do desejo. Desejam alguém que se julga bonito, atraente. De novo: olhem as revistas. Liguem a TV… Qual é a mulher que é colocada como a ideal? Quantas de nós já fomos preteridas pelo simples fato de sermos negras? Como falar em gosto pessoal quando a esmagadora maioria pretere mulheres negras? Como falar em “escolha do indivíduo” quando essas escolhas não nos escolhem? Desculpem o trocadilho.
4. “Ai, mas vocês vêem racismo em tudo! Tudo agora é ‘mimimi’ racismo.”
Então, gato, a gente vê racismo, em tudo, porque… Adivinhe!!! O racismo é um elemento estruturante da sociedade atual. Foram mais de 300 anos de escravidão e medidas institucionais para impedir a mobilidade social da população negra. E você diz que AGORA tudo é racismo. Em que tempo histórico você nasceu? Tem certeza que é deste planeta?
Ninguém fala em racismo porque é gostoso, ou porque não tem mais nada pra fazer na vida. Eu não gostaria de bater tanto na mesma tecla, mas a sociedade não me dá outra opção. Agora, pegue sua nave espacial e volte para o planeta do qual você veio. Porque se tivesse chegado ontem e dado uma olhada bem rápida, já teria notado o racismo latente desta sociedade. Por fim, vou lá passar o meu Lancôme. Sabe como é, preciso estar linda para a próxima chuva de meteoros.
* Djamila Ribeiro é feminista. Mestranda da área de filosofia política na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), ela colabora, ainda, com a revista CartaCapital