A professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Andrea Alice da Silva fez pós-doutorado na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, em 2019, e retornou ao Brasil em fevereiro deste ano. Pouco tempo depois, sua vida teve uma mudança radical. Com a chegada do novo coronavírus, ela mudou sua linha de pesquisa e passou a se dedicar a ajudar no diagnóstico da doença. “A covid atropelou tudo. As minhas linhas de pesquisas originais estão todas paralisadas”, conta. Uma das brasileiras à frente dos estudos sobre a covid-19 no país, ela faz parte do diminuto universo de 23% de docentes negras no ensino superior do país, segundo o mais recente Censo de Ensino Superior do Inep, de 2018. Brancas são maioria (76%).
A principal linha de pesquisa da professora da UFF é a hepatite C, na qual investiga como novos tratamentos para a doença são conduzidos no Brasil, já que protocolos anteriores registravam vários efeitos adversos. Com doutorado em Biologia Celular e Molecular pela Fundação Oswaldo Cruz e larga experiência em imunologia clínica, a pesquisadora passou a se dedicar especificamente à covid-19. O Laboratório Multiusuário de Apoio à Pesquisa em Nefrologia e Ciências Médicas (Lamap), onde atua como subcoordenadora, foi reorganizado para dar apoio ao diagnóstico laboratorial do Hospital Universitário Antônio Pedro, da própria UFF.
“Neste momento, estamos trabalhando com duas linhas de pesquisa relacionadas à covid-19. Uma linha imunológica, de identificação das moléculas imunes que estão relacionadas com o prognóstico dos pacientes com covid-19, que pode ajudar a prever se o paciente vai piorar ou melhorar da doença. E a outra linha é a identificação de outros vírus que podem estar associados à gravidade da doença”, detalha.
Desde o início da crise causada pela doença, o rosto de outras duas mulheres negras foram destaque nas pesquisas. A biomédica soteropolitana Jaqueline Goes de Jesus sequenciou o genoma do novo coronavírus em 48 horas, tempo recorde em relação a outros países. Formada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e doutora em Patologia Humana, a pesquisadora faz parte da equipe do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), liderado pela médica Ester Sabino, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Se errarmos, como mulheres negras vamos ser cobradas imediatamente por conta do racismo. E isso vai ser diferente de uma mulher não negra
— Mychelle Alves, chefe do Laboratório de Medicamentos, Cosméticos e Saneantes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
Em fevereiro deste ano, a Gênero e Número lançou o Open Box da Ciência, uma cartografia que destaca o protagonismo de 250 mulheres em cinco áreas da ciência. No levantamento, foi registrada baixa presença de mulheres negras nas listas das cinquenta primeiras protagonistas mulheres de cada área de conhecimento da cartografia, principalmente nas áreas da Saúde e de Biológicas, que atuam diretamente na pesquisa e no combate à doença.
Para a pesquisadora em Saúde Pública e chefe do Laboratório de Medicamentos, Cosméticos e Saneantes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Mychelle Alves, essa baixa presença é fruto do racismo. “Capacidade e inteligência nós temos, mas somos pretos. No Brasil, o racismo é muito velado, então, já percebi que, quando as pessoas me veem pessoalmente, elas têm um olhar de espanto, de que não era o que esperavam como uma pesquisadora ou gestora”, diz Alves.
“O que me impacta é que as mulheres negras se cobram demais, mesmo em um momento de pandemia. Por mais que eu esteja trabalhando muito, acho que não posso errar. Isso porque, se errarmos, como mulheres negras vamos ser cobradas imediatamente por conta do racismo. E isso vai ser diferente de uma mulher não negra.” Alves integra o Comitê Pró-Equidade de Gênero e Raça na Fiocruz, que debate a presença de mulheres e pessoas negras e indígenas na instituição e busca visibilizar a trajetória dessas cientistas.
A pesquisadora também atua no enfrentamento à covid-19, nas áreas de vigilância sanitária e de saúde pública. No laboratório, coordena o setor que faz todo o controle de qualidade de álcool em gel e líquido disponíveis, para garantir a qualidade do produto e checar se a dosagem está correta. Já no setor de medicamentos, tem acompanhado todas as movimentações na busca e eficácia de medicamentos contra a doença. Como vice-presidente do sindicato dos trabalhadores da Fiocruz, também atua junto à presidência da instituição na coordenação geral de chamadas públicas, com alguns editais de apoio a projetos de enfrentamento da covid-19.
“A questão racial ficou muito latente para mim quando estava buscando estágio em uma multinacional. Segundo a seleção, os primeiros três colocados iriam para a próxima fase. Eu fiquei em terceiro, mas chamaram a pessoa que ficou em quarto lugar, que era uma mulher branca”, conta Alves.
Acesso a bolsas de pesquisa
Na distribuição das bolsas de pesquisa, a desigualdade de gênero e racial também está presente. Apenas 15% das docentes no ensino superior do Brasil têm acesso a este tipo de apoio. Entre elas, somente 2,6% são negras, enquanto brancas representam 12,3%.
Para Andrea Alice da Silva, que já recebeu duas bolsas de pesquisa Jovem Cientista do Nosso Estado, concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), ter acesso ao financiamento é complicado, ainda mais no caso de mulheres, porque não se pode parar de produzir e de buscar essas bolsas.
Para fazer sua pós-graduação nos Estados Unidos, a pesquisadora pleiteou uma bolsa da Capes. Para sua surpresa, não foi aprovada, e disse ter estranhado quando comparou seu currículo com o de outros pesquisadores contemplados. Silva abriu um recurso, que primeiramente foi negado. Mas quando ela enviou uma carta com sua trajetória à comissão, os membros perceberam que havia algo errado com o sistema de avaliação e que ela deveria ter sido contemplada. “Foi quando eles me deram a bolsa como pesquisadora visitante nos EUA. Mas eu tive que brigar. Não dá para desistir”, resume.
Um dos caminhos para reduzir a diferença entre negros e brancos na docência da pós-graduação são políticas de ações afirmativas. Em junho, essas políticas foram atacadas pelo o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, cujo último ato antes da demissão foi revogar a portaria que trata de políticas de inclusão em programas da pós. Contestada pela oposição no Supremo Tribunal Federal e alvo de grande reação de movimentos sociais, a decisão de Weintraub foi cancelada pelo Ministério da Educação.
“Na graduação, eu vivia uma coisa muito interessante. Eu era da favela, estava no ensino superior, mas não me encontrava. Não me sentia pesquisadora, mas ao mesmo tempo eu já era. No entanto, eu não tinha o mesmo perfil daquela população ali. Naquela época, eu não percebia como eu era a única negra da turma. Eu cresci pensando que, por ser negra e mulher, tinha que estudar muito, não poderia ter vacilos. Então, eu tentava não me incomodar com o meio e só cumprir minha meta”, conta Regina Fernandes Flauzino, vice-diretora do Instituto de Saúde Coletiva da UFF e doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Pesquisa sobre a incidência da covid em corpos negros
Professora e pesquisadora do departamento de Epidemiologia da UFF, Flauzino atua principalmente na epidemiologia das doenças transmissíveis, como dengue e hanseníase. Neste momento, dedica-se à pesquisa de determinantes sociais, como raça e território, para entender o adoecimento das pessoas com o novo coronavírus.
“Na minha família, sempre foi falado para não se ‘embrenhar’ no debate de ser negro, que não se poderia perder tempo com isso. Por isso, só no meu doutorado essa temática das mulheres negras surgiu mais na minha vida. E, com a covid-19, tenho conseguido pautar melhor isso, falando principalmente da incidência da doença nesses corpos.”
Flauzino faz parte da pesquisa “Protocolo de investigação para os primeiros casos e contatos de coronavírus (COVID-19) em março e abril de 2020, Niterói-RJ”, do Instituto de Saúde Coletiva da UFF. A pesquisadora ainda conta que, durante esse período de isolamento social, foi convidada a fazer parte da Associação Brasileira de Saúde Pública (Abrasco), que trabalha as vulnerabilidades e as populações de risco ao novo coronavírus. “Agora, com a covid-19, tenho me aproximado bastante da discussão de raça”, afirma.
Pesquisadora e Coordenadora Adjunta da Fiocruz Piauí, Elaine Nascimento atua na áreas de Ciências Sociais aplicadas à Saúde Pública. Com a pandemia, tem discutido na academia e fora dela como a covid-19 não é uma doença democrática, mas tem cor e gênero, o que causa certo desconforto no meio acadêmico, segundo a pesquisadora.
Doutora e Mestre em Ciências pela Instituto Fernandes Figueira, da Fiocruz, professora do programa de políticas públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e colaboradora da pós-graduação em Medicina Tropical na Fiocruz, Nascimento não orienta nenhum aluno negro nas duas pós e ressalta como a academia é um lugar de conhecimento ainda muito embranquecido. Assim como outras pesquisadoras negras ouvidas pela Gênero e Número, ela foi a primeira da sua família a acessar e concluir o ensino superior.
“As relações construídas na universidade eram com pessoas brancas. Eu estudei em espaços em que as pessoas brancas se dizem detentoras da verdade, a maioria dos autores eram homens e havia, no máximo, uma ou duas autoras, todas brancas e europeias. Nesse processo, eu quase me perdi, porque não me reconhecia nesse espaço e nesse tipo de conhecimento. Foi nesse momento que comecei a questionar essas ausências no espaço acadêmico”, pontua Nascimento.