Tenho uma amiga que afirma que a gente só prova que assumiu a própria profissão ao preencher a ficha de um hotel. Durante anos, e até hoje, fico em dúvida no momento de declarar na linha pontilhada que raios eu faço. Se puserjornalistaserá meia verdade. Nunca trabalhei em redação de jornal ou revista. Se optar por redatora – aquela que escreve o que o cliente manda – chegarei mais perto. Mas não será totalmente autêntico. Pois faz um tempinho que ando escrevendo o que quero, seguindo meu nariz, coração, vontade. Por que então não me declaro de vez escritora? Por conta de algo entre a modéstia e a vaidade.
Por Fernanda Pompeu do Yahoo
Outro dia numa padaria, aqui na Vila Madalena, a moça que atende às mesas e já me trata como amiga, quis saber O que a senhora faz? Terminei de dar o gole no expressinho e tasquei Sou cronista. A garota espantou-se como se eu fosse uma marciana, mas educada retrucou Bacanal! Arrisquei Você sabe o que é crônica? Resposta sincera e polida Não, mas deve ser uma coisa legal.
Entendo que a moça da padoca não saiba o que é crônica. Aliás 2/3 do mundo também não faz ideia. Nem esta cronista, que ora escreve pra você, sabe direito o que é uma crônica. Talvez a própria palavra não ajude, pois traz uma carga negativa: doença crônica, pobreza crônica, inflação crônica, cronicamente inviável. Mas impossível mudar a palavra que está entre nós desde os primeiros portugueses. A carta que Pero Vaz de Caminha escreveu, em abril de 1500, ao Rei de Portugal – considerada a certidão de nascimento do Brasil- leva o título de Crônica do Descobrimento.
Dificuldade adicional é escrever crônica em terra de cronistas ilustres, mulheres e homens que enxergam grandeza no cotidiano da vida. Entre eles, reluz o capixaba-carioca Rubem Braga. Cronista total, ele cunhou ótima definição para o gênero: Fazer crônicas é escrever de ouvido. Assim como os músicos de ouvido que não leem uma partitura, mas tocam uma beleza. A audição a qual Rubem se refere é sem dúvida literal. Cronista profissional é aquele que não perde a conversa da mesa ao lado. O fuxico do passante no celular. O idioma das ruas.
Machado de Assis que nos entregou romances e contos de gigantesca pena, para se distrair e ganhar uns trocos, também foi autor de crônicas. Ele gostava de dizer que a crônica se parecia a duas vizinhas conversando de suas janelas. Acho que o Bruxo do Cosme Velho acertou em cheio nessa observação que eu levo a sério. Tanto que essa crônica surgiu na horinha do diálogo entre mim e moça da padaria.