“‘Que Horas Ela Volta?’ silencia sobre racismo e os privilégios da branquitude”

À convite do “Metrópoles”, a doutoranda da Universidade de Brasília, Marjorie Nogueira Chaves, escreveu considerações sobre um dos principais filmes brasileiros de 2015

Por Maíra de Deus Brito Do Metrópoles

 

“Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, foi o filme brasileiro com uma das bilheterias mais expressivas de 2015. O sucesso e a importância do longa-metragem são inegáveis, porém, artistas e acadêmicos, entre outras classes, sentiram a ausência do recorte racial na obra. No último dia do Mês da Consciência Negra, o Metrópoles convida a doutoranda em Política Social pela Universidade de Brasília e Mestra em História pela mesma instituição, Marjorie Nogueira Chaves, para algumas considerações sobre o filme.

Longe de ser uma análise fílmica com base em teorias do cinema, a ideia desse texto é chamar a atenção para uma discussão pretensamente ausente no filme “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert: as relações raciais que permeiam o trabalho doméstico no Brasil. Historicamente, o trabalho doméstico e de cuidados é realizado por mulheres negras desde o período colonial e, contemporaneamente, o país se destaca como o que tem maior número de trabalhadoras domésticas no mundo, segundo a Organização Mundial do Trabalho (OIT). São cerca de 7,2 milhões de trabalhadoras e trabalhadores, sendo que 93% são mulheres e, desse total, 61,6% são negras. Pautar a questão racial em um filme sobre trabalho doméstico no contexto brasileiro não se trata de um detalhe ou um mero adendo que possa ser “esquecido”. O que explica a ausência quase que total de pessoas negras no filme de Muylaert?

O longa-metragem estreou ainda no calor das discussões sobre a aprovação e regulamentação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 66/2012, conhecida como PEC das Domésticas, que estende as suas garantias trabalhistas em equivalência com as das demais categorias da classe trabalhadora. Sem dúvida, o roteiro despertou a curiosidade do público, assim como suscitou diferentes análises e elucubrações sofisticadas de autoras brancas. Não basta que um filme seja protagonizado por mulheres para que seja considerado feminista, como algumas leituras propõem.

A relação entre a contratante e a doméstica expõe a perpetuação das desigualdades raciais e de classe entre mulheres dentro da própria divisão sexual do trabalho. A delegação de tarefas tem servido para que mulheres brancas das classes média e alta possam ascender em suas carreiras profissionais e acadêmicas, contratando os serviços de outras mulheres, em sua maioria negras e pobres. No entanto, o silêncio sobre racismo na película somente ratifica que o discurso sobre emancipação está longe de alcançar as experiências de mulheres negras.

O número de filhas de domésticas que se tornam domésticas tem diminuído nos últimos anos, devido ao maior nível de escolaridade das mulheres e a crescente busca por outras alternativas de trabalho. Os tímidos avanços proporcionados pelas políticas de ampliação do acesso ao ensino superior e os sistemas de cotas raciais têm aumentado sobremaneira a presença de jovens negras nas universidades. No filme é perceptível a valorização da meritocracia na figura de Jéssica (Camila Márdila), tornando qualquer debate sobre cotas obsoleto. Uma jovem pobre do interior do Nordeste, porém estudiosa e cheia de ambições que, por seu esforço, consegue passar na primeira etapa de seleção do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).

Não há dúvidas de que Jéssica vai longe, mas ela é branca e, em um país em que o racismo é estruturante das relações sociais, isso faz uma grande diferença. As produções nacionais estão longe de representar a realidade brasileira, já que a população negra corresponde a 52,9% da população total, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para além da ínfima presença de personagens negras sobre um tema tão caro à nossa história, “Que Horas Ela Volta?” silencia sobre racismo e os privilégios da branquitude. Se a diretora e roteirista propôs levar as questões de classe para o cinema mediante reforço de estereótipos e final feliz das protagonistas, esteve longe de contemplar as tensões raciais, indissolúveis da luta de classes.

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