Quebrando o silêncio: como os homens se transformam por Guilherme Valadares

“Quando a gente fala de gênero a gente não está falando só sobre o feminino. Estamos falando também sobre o masculino. E muito se fala sobre o que é mulher, mas pouco se fala sobre o que é ser homem.”

— Aline Ramos, jornalista e editora do site “Que nega é essa?

no Papo de Homem

Assim como Aline, sinto que há muito diálogo acontecendo sobre as mulheres, mas pouco sobre os homens.

Melhor dizendo, noto que há poucas conversas acontecendo que não tratem o masculino como uma “doença” ou problema a ser resolvido. Por mais que isso não seja colocado nesses termos, muitas vezes é o que surge como subtexto, se o foco se concentra apenas em quais são as falhas dos homens.

Acredito que o masculino e o feminino são maravilhosos. Tremendamente ricos e com potencial sem tamanho.

Um masculino seguro de si não precisa se provar a todo momento, dominando, controlando, se impondo pela força. Sabe encontrar sua serenidade, ao mesmo tempo se mantendo pronto para agir.

É capaz de cuidar, nutrir, construir, proteger, fortalecer, escutar, ensinar, ser aprendiz, se fazer forte e rijo como uma montanha quando necessário, e fluir como um riacho quando este for o caminho.

Admira e respeita profundamente o feminino, em si e nas pessoas com as quais se relaciona.

Se preocupa com aqueles que ama e com a maneira como se relaciona com o mundo, não é refém do próprio ego. Tenta reconhecer suas falhas sem ficar preso em ciclos de culpa e autoengano. Entende que é um ser cheio de ambiguidades, defeitos, cantos tortos — e tudo bem. Não vive obcecado com performance ou pela ideia de que precisa ser um “vencedor”.

Quer ser feliz como todos nós. E faz o que pode.

Acredito ser possível cultivarmos esse modo de agir mais sábio e compassivo, aterrado nas masculinidades.

Confio que homens e mulheres podem cultivar relações mais amorosas, construtivas e saudáveis abrindo espaço para reconhecer que há tanto potencial no outro quanto em nós mesmos — por mais distintas que sejam nossas histórias de vida.

Roda de conversa que puxei em um dojo em São José do Rio Preto, com apoio do projeto Dialogue, discutindo masculinidades

Por isso, quando os queridos e talentosos Jonas Sakamoto e Monique Moraes me convidaram para falar no TEDx RuaPortugal, no Maranhão, optei for jogar luz em tudo isso.

Os homens querem e podem se transformar. Não falo baseado em teoria ou achismos, mas sim em mais de 10 anos de vivência prática com o tema.

Acontece que muitas vezes nem sequer abrimos espaço para esses processos, por não sermos encorajados a ficar vulneráveis, sentir e reconhecer nossas falhas e limitações mais profundas. Sem ultrapassar essas barreiras, é comum termos a impressão equivocada, baseada em estereótipos, de que somos bichos muito simples e plenamente seguros em seguir como já estamos.

Listo abaixo algumas perspectivas pra ajudar a quebrar lugares comuns à respeito das masculinidades.

Encontro “23 dias pra um homem melhor”, realizado em nossa sede (2015)

13 dados para entender algumas das dores e obstáculos dos homens

7 em cada 10 homens têm dificuldade, em alguma medida, de falar com seus amigos sobre o que realmente sentem, seus medos e dúvidas (fonte: pesquisa “Precisamos falar com os homens?”, 2016)

8 em cada 10 homens reconhecem que cuidam pouco da própria saúde e gostariam de mudar (fonte: pesquisa “Precisamos falar com os homens?”, 2016)

45.5% dos homens gostaria de se expressar de modo menos duro ou agressivo, mas não sabem como (fonte: pesquisa “Precisamos falar com os homens?”, 2016)

45% gostariam de não se sentir obrigatoriamente responsáveis pelo sustento financeiro da casa (fonte: pesquisa “Precisamos falar com os homens?”, 2016)

54% gostariam de ter mais tempo pra se dedicar aos hobbies e prazeres da vida, sem serem julgados como frouxos ou pouco ambiciosos (fonte: pesquisa “Precisamos falar com os homens?”, 2016)

45% gostariam de explorar mais sua sexualidade, seja em relacionamentos casuais ou estáveis — mas não o fazem por medo de serem julgados (fonte: pesquisa “Precisamos falar com os homens?”, 2016)

93.8% dos homicídios no Brasil são entre homens — tivemos quase 60 mil homicídios no último levantamento, é o maior número absoluto do mundo (fonte: Atlas da Violência 2016)

96.3% da população carcerária no Brasil são homens (fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2014)

No Brasil, as mulheres já estudam mais anos, têm melhor desempenho na educação e são maioria nas universidades (fonte: A presença feminina nos cursos universitários e nas pós-graduações: desconstruindo a idéia da universidade como espaço masculino)

Os homens se suicidam quase 4x mais do que as mulheres no Brasil — essa é a principal causa de morte dos homens abaixo de 45 no Reino Unido, por exemplo (fonte: Mapa da Violência Flacso Brasil)

Os homens vivem 7 anos a menos do que as mulheres no Brasil (fonte: IBGE 2015)

9 em cada 10 mortes no exercício da profissão são de homens (fonte: US Department of Labour 2009 — não encontrei dado similar do Brasil; se alguém souber dele, por favor contar nos comentários!)

Homens de 15 a 30 anos têm de 3 a 4.5x mais chances de morrer do que mulheres na mesma idade, de causas não-naturais, como armas, álcool, drogas e acidentes de carro; se o corte for feito com homens negros, os dados assustam ainda mais (fonte: IBGE 2015)

O contrapé desse debate está na nossa tendência de, ao focar na privações de um gênero, esquecer de seus privilégios. E vice-versa, como o professor e pesquisador Benedito Medrado nos aponta muitíssimo bem.

Se nos focamos apenas na grande quantidade de homens matando outros homens, podemos nos esquecer que 4 mulheres são mortas por parceiros ou ex-parceiros, todos os dias.

Se nos concentramos nas violências sofridas pelas mulheres, podemos esquecer dos números de genocídio que afetam os jovens homens negros.

Se lembrarmos que as mulheres são apenas 16% das CEOs no Brasil e ocupam só 10% do Congresso 3e 16% do Senado, podemos pensar que os homens se resumem ao gênero no poder, esquecendo que eles são a absoluta maioria nos cemitérios e cadeias, se aproximando mais de um gênero de extremos.

Se pensarmos que as mulheres realizam quase 3 vezes mais trabalho doméstico, incluindo cuidar mais dos filhos, podemos esquecer que isso priva os homens de adentrarem o campo do afeto e das emoções, os tornando mais isolados, com dificuldade em criar vínculos profundos e especialmente vulneráveis a depressão e suicídio.

Seriam os homens máquinas pré-programadas para matar, destruir e nunca emitir emoções? E as mulheres vítimas indefesas de predadores do sexo oposto, incapazes de se mostrarem agressivas? Ano passado rodei o Brasil junto com outros pesquisadores, visitando institutos que trabalham com transformação de homens e mulheres, e fiz essas perguntas. Todos foram unânimes ao responder que esses estereótipos não correspondem à maior parte dos casos reais.

Roda de conversa na sede do PdH

Em diferentes contextos, cabem diferentes abordagens, linguagens, ações e prioridades.

Essa sensibilidade é chave.

“O que equidade de gênero tem a ver com a vida e carreira dos homens?” — conversa que puxei na SAP, em Porto Alegre

Então você está vitimizando os homens?

De modo algum. Apenas lançando luz em questões duras enfrentadas por eles, por dois motivos básicos.

Primeiro, para que os próprios homens possam conversar entre si e se ajudarem a crescer. Segundo, para criar mais pontes de empatia e lucidez entre homens e mulheres.

É possível termos empatia e ampliar a nossa visão de problemas complexos, entendendo que a dor de um não anula a dor do outro.

Qual a proposta então?

Um convite prático: que surjam mais espaços de transformação para os homens.

Fred Mattos falando sobre maturidade emocional no “Homens Possíveis”, feito por nós em dezembro de 2016

Todos temos a ganhar com isso.

Há inúmeros espaços nos quais homens fazem o de sempre e agem como sempre. Mas temos uma tremenda escassez de locais que cuidem deles e os encorajem a se transformar. E são coisas completamente diferentes.

Ao longo de minha fala no TEDx e desse texto abordo interseções de gênero e raça, mas meu foco aqui é impulsionar a transformação positiva dos homens. Fico feliz em saber que há mulheres poderosíssimas fazendo o mesmo pelo feminino. Quase todos os dias as procuro pra conversar, escuto e aprendo com elas. E tenho sentido cada vez mais reciprocidade.

De cá, proponho que mais homens conversem entre si, que possam se apoiar.

Que sustentem círculos, rodas de conversa, que abram seus incômodos e exerçam sua liberdade de viver o masculino em toda sua riqueza, do modo como acharem melhor, em seu próprio tempo. Que desenvolvam uma relação mais satisfatória em todos os âmbitos de suas vidas. Que não se prendam a essas bobagens de “novo homem” isso ou aquilo.

Vivemos em um país gigantesco demais pra achar que nossas pequenas bolhas de realidade dão conta do recado. Andar Brasil afora mostra que ser homem em Recife é diferente do que se vive em BH ou São Paulo, assim como há distinções entre periferia, centro, zonas urbanas e o campo, dessas e de outras cidades. E que bom que é assim.

Não existe e nunca existiu “o” homem, uniforme, sólido, coeso. Existem, cada vez mais, expressões diversas de masculinidades.

Caso tenha interesse em puxar algo assim e não saiba por onde começar, deixe um comentário. Se tiver vontade de fazer isso acontecer em sua organização, me envie um alô no [email protected] .

Vou adorar esticar essa conversa.

Há 10 anos fazemos esse trabalho no PapodeHomem, digital e presencialmente. Não pretendemos parar tão cedo.


Nota: um abraço especial a todos na produção do TEDx RuaPortugal. Foi uma alegria ser convidado para um evento organizado com tanto coração e profissionalismo.

Nota2: aqui o documentário citado na palestra. E aqui o relatório com os gatilhos de transformação.

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