30 de dezembro de 1976. O Brasil inteiro se prepara para a virada do ano. Em Búzios, no Estado do Rio de Janeiro, a mineira Ângela Diniz, 32 anos, é morta com três tiros no rosto e um na nuca. O assassino, Doca Street, seu namorado, enciumado e inconformado em não poder ter Ângela somente para si. Ela, uma mulher bonita e encantadora, era conhecida como a “Pantera de Minas”. O argumento usado pela defesa do autor dos disparos foi o de que ele agiu em legítima defesa de sua honra.
Por Adriana Mota da PartidA
No primeiro júri popular, em 1979, o réu foi condenado a dois anos de prisão, a serem cumpridos em liberdade. Na porta do Fórum em Cabo Frio, uma multidão aguardava pelo julgamento, sedenta de justiça. Qual justiça? A audiência dava apoio ao assassino expresso em gritos e cartazes: “Doca, Cabo Frio está com você”. A população entendia que Doca tinha feito algo legítimo. Afinal, Ângela era a mulher sedutora, uma “Vênus lasciva”, que enlouqueceu um homem com suas condutas e o levou ao ato extremo de matar por amor. Doca merecia ser punido ou a verdadeira culpada era Ângela?
31 de dezembro de 2016, 40 anos depois da morte de Ângela Diniz, mais um feminicídio acontece no Brasil. Dessa vez em Campinas, com 12 vítimas fatais, entre elas a ex-mulher do atirador, Isamara Filier, e seu filho, o pequeno João Victor, de oito anos. Em cartas, o assassino nomeia todas as mulheres mortas com um adjetivo comum: vadias. E ele iria matar o maior número possível delas. Foram 9 mulheres mortas na noite de Réveillon. O autor dos disparos também escreveu que amava o filho. João Victor foi sua 11a vítima. Em seguida, suicidou-se.
Nos 40 anos que separam um assassinato do outro, o que aprendemos sobre o feminicídio, crime que tira a vida de dezenas de mulheres diariamente em nosso país? Muito pouco… Somos hoje o 5o país do mundo com mais mortes violentas de mulheres, num ranking com 84 países. Mesmo tendo altas taxas de mortes violentas de mulheres em todo o território nacional, somente em 2015 a lei do feminicídio foi sancionada, Lei 13.104. E ainda hoje há quem acredite que mulheres são as responsáveis pelos seus assassinatos, porque não agiram de forma adequada.
No caso de Ângela Diniz, o primeiro julgamento foi anulado e em 1981 houve novo julgamento, num contexto bastante diferente. Em apenas 2 anos houve uma grande mobilização dos movimentos feministas e de mulheres que não aceitaram o argumento da legítima defesa da honra e do crime passional para justificar a morte violenta de mulheres. Não era apenas por Ângela Diniz, mas por várias mulheres que estavam sendo mortas em crimes de repercussão nacional. Se a defesa dos agressores dizia que eram mortes por amor, as feministas devolviam: Quem ama não mata! Esse era o clamor das muitas vozes que se levantaram sobre o caso de Ângela Diniz no segundo júri. Essas vozes pressionaram a opinião pública e a nova condenação foi de 15 anos.
Os feminicídios de Ângela e Isamara têm alguns aspectos em comum, típicos dessa forma de crime. Um desses aspectos é o contexto de desigualdade de gênero que permeia o fato violento. Relacionamentos abusivos e violência doméstica e familiar são contextos em que essa desigualdade se expressa. Se uma mulher morre em decorrência de um relacionamento abusivo, não há dúvidas de que se trata de um feminicídio.
Outro aspecto em comum é a reação de uma parcela da sociedade, imputando às vítimas a responsabilidade pelo ocorrido. Para isso, desqualifica-se a vítima, de todas as formas possíveis, para justificar sua morte: não eram boas esposas; não eram boas mães; mentiam; tinham comportamento sexual condenável; não deixavam os ex-maridos serem pais; eram vadias… O linchamento moral de Ângela Diniz foi tão forte que provocou a reação de Carlos Drummond de Andrade em uma crônica “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”, disse ele.
No caso de Isamara Filier, não será possível julgar o assassino pois ele também está morto. Se houvesse um julgamento, dificilmente não haveria uma condenação justa, com pena de pelo menos 20 anos de reclusão, dada a repercussão do crime. Mas cabem algumas perguntas. A atuação do sistema de justiça é suficiente para evitar os feminicídios? O Estado brasileiro também é agente desse e de outros feminicídios ao se omitir da tarefa de dar às mulheres as condições para viver suas vidas livres de violência?
Quando não estrutura adequadamente a rede de serviços de atendimento a mulheres em situação de violência de gênero, o Estado se torna incapaz de nos oferecer as condições adequadas para vivermos em paz. Quando se exime da tarefa de concretizar uma política de enfrentamento à violência contra as mulheres que reconheça a desigualdade de gênero como um dos seus pilares, o Estado se omite em sua função. Quando refuta a educação livre de estereótipos de gênero ou proíbe a discussão sobre gênero e seus padrões de relação no ambiente escolar, o Estado abre mão da possibilidade de prevenir a violência entre homens e mulheres. Quando o Estado se omite, ele não se livra das responsabilidades, ao contrário, assume os riscos de sua omissão. Um Estado que não tem políticas públicas sólidas e sérias para enfrentar a violência contra as mulheres não é um Estado Democrático para todos e todas.
Reconhecer que a violência contra as mulheres é uma grave questão em nossa sociedade é urgente. Ter políticas públicas que possam dar resposta à essa questão é a contra partida desse reconhecimento que ainda estamos aguardando. Desde a década de 70, o movimento de mulheres tem sido um incansável motor das políticas públicas, pressionando para que medidas sejam tomadas no sentido de prevenir, punir e erradicar a violência contra as mulheres. Alcançamos conquistas importantes, mas não atingimos os pilares da violência de gênero, que sustentam uma sociedade marcada pelo machismo e a misoginia. Se feminicídios continuarem a serem vistos como crimes de amor, é porque precisamos aprender mais sobre feminicídios. E sobre amor também.