Quem sangra na fabrica de cadáveres? Chacina como politica publica de Estado.

22/09/25
Enviado para o Portal Geledés, por Fabiane Albuquerque

Camila Vedovello, na sua pesquisa de doutorado, estudou chacinas cometidas por policiais, ou seja, agentes do Estado. O seu trabalho foi vencedor foi a do III Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos, realizado pela Unicamp e Instituto Vladimir Herzog. Camila foi minha colega de aula e, durante a pesquisa, acompanhou as famílias de vitimas de chacinas, foi ameaçada com telefonema anônimo em sua casa, mas ela não desistiu do tema e nos contempla com o livro Quem Sangra na Fábrica de Cadáveres?: A Chacina da Pavilhão 9 e as Chacinas em São Paulo, publicado pela Editora Mórula. Devido à sua importância, resolvi entrevista-la. 

Camila Vedovello – Arquivo pessoal
  1. Camila, por que você escolheu estudar chacinas cometidas por policiais no seu doutorado? 

A escolha pelo tema das chacinas para pesquisa durante meu doutorado perpassa a minha trajetória acadêmica. Desde a graduação e durante o mestrado em Ciências Sociais, na Unesp de Marília, pesquisei o encarceramento no estado de São Paulo e jovens encarcerados. Ao finalizar o estudo, em 2008, fui convidada pela pesquisadora Marisa Fefferman a participar do Tribunal Popular na cidade de São Paulo. O Tribunal Popular foi uma iniciativa que agregava diversos movimentos sociais e propunha colocar o Estado Brasileiro no banco dos réus, através de denúncias sobre violações de Direitos Humanos. Dentre os movimentos sociais que compunham o Tribunal Popular, estavam as Mães de Maio. O contato com as mães – que estavam desde os Crimes de Maio de 2006, em busca de justiça pelos seus filhos que foram executados por agentes de segurança pública – foi extremamente importante para que eu olhasse para as chacinas e execuções com interesse de pesquisa. Desde esse primeiro contato com as Mães de Maio, eu comecei a me interessar, cada vez mais, em entender como e por que as chacinas ocorriam, quem as organizavam, quem eram as vítimas e os territórios. Demorou bastante para que esse interesse se transformasse em projeto de pesquisa. Eu passei da academia, no mestrado, para uma ação mais militante no Tribunal Popular e retornei anos após o final do mestrado para a academia. O que posso dizer é que, como aponta Nilma Lino Gomes, as Mães de Maio tiveram um papel educador muito importante para mim, para que eu desenvolvesse o interesse em pesquisar as chacinas e, em especial, as chacinas executadas por policiais. Acompanhar o movimento e a dor das mães foi o que me fez olhar para as chacinas e querer estudá-las.  

  1. Podemos afirmar que chacina se tornou política pública do Estado brasileiro? E, como chegamos nisso?  

Na minha pesquisa, mostro como a construção do Estado brasileiro é efetivada a partir de extermínios e produções de mortes. Somos um país formado através de genocídios dos povos nativos e dos povos africanos. As chacinas são formas reelaboradas de produzir os extermínios anti negro na contemporaneidade. As chacinas são práticas muito enraizadas no ódio racial e de classe. Na minha tese de Doutorado aponto como as chacinas vão se transformando em ações executadas, preferencialmente, por agentes de segurança pública, em grande parte, fora do horário de serviço, em que, como em um jogo de esconde, não mostram os rostos para não serem responsabilizados e, ao mesmo tempo em que deixam seus coturnos à mostra ou gritam “é a polícia”.  Durante a Ditadura Civil Militar no Brasil, o Esquadrão da Morte, que era um grupo formado por policiais civis, executava pessoas nas periferias e retirava presos do Presídio Tiradentes, os chacinavam e os corpos eram jogados em territórios periféricos. As chacinas se tornaram cotidianas na cidade de São Paulo e nas cidades da Região Metropolitana a partir dos anos 1980, tendo seu pico no final dos anos 1990,  entrando em declínio após os anos 2000. No período entre 1980 e 2000 as chacinas eram executadas por diversos sujeitos, dentre esses os agentes de segurança pública. Após 2006, em específico com a ocorrência dos Crimes de Maio, as chacinas passam a ser realizadas, em grande parte, por agentes de segurança pública em atuações fora do horário de trabalho e possuindo como motivação as vinganças e as demonstrações de poder sobre determinados territórios. Chamamos de chacinas policiais quando essas execuções em massa ocorrem durante o expediente do trabalho policial. Atualmente, no estado de São Paulo, tivemos as chacinas policiais ocorridas na baixada santista, sob o nome de Operação Verão e Operação Escudo. A alta letalidade dessas ações, agora sob um manto de legitimidade estatal, mostram uma possível modificação no modus operandi das chacinas, de algo ilícito e performático para uma ação com racionalidade estatal e justificada por órgãos do governo como uma guerra necessária para a política de segurança pública. Ao fim, essa “guerra” tem como alvo preferencial, corpos específicos:  negros e periféricos. 

  1. Porque o título “quem sangra na fábrica de cadáveres”? 

O título faz menção ao disco e a uma música de Eduardo Taddeo, “A Fantástica Fábrica de Cadáver”.  No disco e na música, Eduardo Taddeo relata sobre as execuções e chacinas paulistas e, ao final da música, o rapper sentencia: todos sangram na fantástica fábrica de cadáver. A música, e essa última frase, se correlacionam com as minhas perguntas de pesquisa que eram: “Como se configuram as chacinas em São Paulo e RMSP? Elas podem ser consideradas formas de gestão das populações e ferramentas do genocídio da população negra?”. Ao analisar como as chacinas eram produzidas, me deparei com dados que evidenciavam que não são todos que sangram, mas sim grupos sociais específicos, como a população negra e periférica e que o perfil das pessoas mais vulneráveis a morrerem em chacinas é o de homens jovens, negros que moram ou estão de passagem em ruas de bairros periféricos e de favelas. Assim, eu parti desse disco e dessa música que é forte e crítica em relação às execuções paulistas para questionar quem são essas pessoas exterminadas cotidianamente. 

  1. O que o Estado, através do monopólio do uso da violência, quer com este modus operandi?  

As chacinas não são, necessariamente, uma ferramenta estatal. As chacinas podem ser executadas por diversos atores e diversos motivos, elas podem ocorrer a partir de uma polissemia de conflitos nos territórios. Ocorre que as chacinas, quando executadas por agentes de estado, têm como pano de fundo o racismo, a raiz das chacinas é o entendimento de que a população negra é uma população que pode ser matável. Nesses casos, as chacinas possuem uma produtividade estatal: agentes de segurança pública ao executarem as chacinas o fazem através de domínio de territórios e de vinganças e as chacinas mobilizam através do mote da guerra, seja às drogas ou ao crime, o ódio social contra a população negra, através de uma relação estabelecida que coloca os negros sob o signo do suspeito. Quando o modus operandi é o – que vou chamar aqui de – tradicional, com pessoas encapuzadas que chegam em um território atirando a esmo, há a intenção de instalar o medo e demonstrar que aquele território pode ser dominado e que ninguém que ali se encontra está seguro. Quando as chacinas ocorrem com o modus operandi das Operações Policiais, temos os batalhões e as Secretarias de Segurança Pública dos estados que legitimam essas ações, trazendo o medo e a insegurança para a população moradora desses territórios, ao mesmo tempo que se utilizam das chacinas policiais como forma de ganho político, através do populismo penal da extrema-direita contido na expressão “bandido bom é bandido morto” e, para quem executa, todos que estão ou residem no território são potenciais bandidos. 

  1. Tem esperança para o povo pobre e racializado? 

Sempre há esperança. Há uma máxima dos movimentos populares que diz que “só a luta muda a vida” e os movimentos negros e os movimentos de familiares de vítimas do Estado, representado, muitas vezes por mulheres negras, trazem há muitas décadas, na luta cotidiana contra o racismo e contra a violência policial, essa esperança de mudança. Parafraseando o título do livro de Ângela Davis, digo que a busca por uma vida em que as chacinas e execuções sejam interrompidas é uma luta constante. 


Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, feminista negra, escritora. Neste texto, entrevista a doutora Camila Vedovello sobre a sua pesquisa de doutorado em chacinas no Estado de São Paulo.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

Compartilhar