Durante consulta aos búzios pedi permissão ao Rei de Oyó, Soberano da justeza das coisas, Senhor de mim, para fazer uma pergunta tola. Estava inquieta com a dúvida seguinte: universidades negras na Bahia não deveriam ser redundância? O Rei dos reis desmanchou o siso, riu o riso bonachão que sempre me anima quando estou prestes a desistir e recomendou-me: pergunte aos universitários, minha filha.
Por Cidinha da Silva enviado para o Portal Geledes
As cotas raciais foram (são) necessárias no país mais negro fora de África para garantir que mulheres e homens negros tivessem vez no ensino superior das universidades públicas brasileiras. Este processo de luta pluralizou rostos, vozes, culturas e saberes no universo acadêmico ao impulsionar também as reivindicações de espaço para estudantes oriundos de escolas públicas, indígenas, portadores de deficiência e pessoas trans.
A universidade orgulhosamente branca, em resposta, permite que seus estudantes brancos e endinheirados apliquem trotes humilhantes e racistas aos estudantes negros, que estuprem colegas mulheres e que, depois de forte pressão social por averiguação dos fatos, julga-os em corte interna que os pune (e ao crime hediondo) com mero afastamento do cotidiano acadêmico por alguns meses.
Os que temem a universidade negra não têm pejo de, mesmo antes de sentarem-se frente aos búzios e aos Babás e Iyás negros, nos parcos territórios de asé onde ainda reinam, prescrever: “olhe minha mãe, olhe meu pai, faça aí um ebó daqueles bem potentes porque a chapa está quente para o meu lado.”
A universidade negra quer essa Iyá e esse Babá negros que socorrem e acolhem a todas as pessoas, indistintamente, sentados nos bancos escolares para obterem a titulação universitária no grau máximo, mas, mais do que isso, a universidade negra os quer como professores, como mestres de saberes, cujos títulos foram outorgados pela tradição e pela sabedoria ancestral e que podem (e devem) ministrar aulas na universidade, no mesmo patamar de doutores, pós-doutores e professores titulares.
Carnaval, Candomblé e Capoeira Angola, expressões inequívocas da herança africana no Brasil, nunca se fecharam para os brancos. Por que a universidade negra que nascerá da universidade branca se fecharia? Ainda por muito tempo, continuará sendo a maioria branca a responsável por elaborar as provas dos vestibulares (os professores negros não chegam a 1% do corpo docente das principais universidades públicas brasileiras), por compor a banca dos exames de admissão e conclusão dos programas de pós-graduação e, principalmente, dos concursos para docência.
Por que, então, tanto medo, senhores? A favor de vocês depõe ainda o retrato da realidade feito por Geraldo Filme: Crioulo cantando samba / Era coisa feia / Esse é negro é vagabundo /Joga ele na cadeia / Hoje o branco tá no samba / Quero ver como é que fica / Todo mundo bate palmas / Quando ele toca cuíca. / Nego jogando pernada? / Mesmo jogando rasteira / Todo mundo condenava / Uma simples brincadeira / E o negro deixou de tudo / Acreditou na besteira / Hoje só tem gente branca / Na escola de capoeira. / Negro falava de umbanda / Branco ficava cabreiro / Fica longe desse negro / Esse negro é feiticeiro / Hoje o preto vai à missa / E chega sempre primeiro / O branco vai pra macumba /Já é Babá de terreiro!
Acalmai vossos corações! A simbologia do poder negro é importante, mas as conquistas incipientes não têm sido suficientes sequer para garantir nossa existência. Morremos às centenas a cada semana, como Cláudias, DGs, Amarildos, como o menino Eduardo e o adolescente Kaíke Augusto, só para citar algumas mortes de negros anônimos noticiadas pela mídia, dada a situação de extrema violência e/ou covardia que os vitimou.
Não se desesperem! A universidade negra não lhes tirará os dedos, nem os anéis. Não mexerá no conforto de vocês, tampouco. Nada disso. A universidade negra apenas criará possibilidades de conforto existencial e epistêmico para os que só conhecem o desconforto. O mundo é um conjunto de possibilidades, mais do que um conjunto de realidades, lição do mestre Milton Santos há décadas disponível para aprendizado.
A universidade negra quer afirmar direitos, promover culturas e saberes que não têm tido vez no mundo globalizado, quer a ética como base epistemológica inegociável. Quer coexistir, não quer eliminar indivíduos, mas é certo que queira eliminar o racismo e estabelecer a convivência equânime entre todas as pessoas, respeitando todos os seus pertencimentos.
Não temam, senhores! Nos EUA, berço das universidades negras, a centenária Howard University, daqui a pouco precisará garantir cotas para estudantes negros, pois, a cada ano, aumenta o número de estudantes brancos que a procura por não terem condição de custear a pesada tuition das universidades tradicionais (leia-se brancas) e matriculam-se nas instituições negras que têm valores mais acessíveis.
A universidade negra no Brasil é necessária para que veteranos brancos sintam-se desencorajados de travestirem-se de ku klux klan para recepcionar calouros também brancos, majoritariamente, mas com um recado subliminar e sub-reptício aos negros, aqui traduzido: “se vocês saírem do seu lugar de negro, estamos prontos a lhes mostrar quem é que manda.”
Exercitem, senhores, o princípio iansãnico-budista do desapego aos privilégios da branquitude, do movimento que desloca os ares do novo. Não tenham medo, senhores, hay que enegrecer para germinar a ternura.
Cantem com Mariene de Castro, ajuda a alfabetizar o ouvido e o coração: Eu sou preta / Trago a luz que vem da noite / Todos os meus santos também podem lhe ajudar / Basta olhar pra mim pra ver porque é que a lua brilha / Basta olhar pra mim pra ver que eu sou preta da Bahia / Eu tenho a vida no peito das flores vivas / No meu sangue o dendê se misturou / Tenho o fogo do suor dos andantes / E a paciência do melhor caçador. / Eu sou preta / Vou de encontro à alegria / Minha fantasia é mostrar o que eu sou / Vim de Pirajá tocando pra Oxalá / Pra mostrar a cor do Alá de Salvador (ou do Recôncavo). / Eu sou Preta / Mãe da noite / Irmã do dia…