Quem tem medo de casais negros?

Na coluna desta semana, Stephanie Ribeiro escreve sobre a falta de representatividade de negros nas novelas, vivenciando dramas cotidianos e não apenas crises provocadas por relacionamentos interraciais

Por Stephanie Ribeiro Do Revista Marie Claire

Zé ( Lázaro Ramos ) e Isabel ( Camila Pitanga ) em cena de Lado a Lado (Foto: TV Globo/Raphael Dias)

 

No ano passado comecei uma conversa sobre novelas e racismo no texto Até quando as negras serão domésticas na sua novela? Ao final, escrevi:

Cansativo como todos os roteiristas brasileiros são graduados em Casa-Grande e Senzala e adoram pressupor que a democracia racial mora no relacionamento interracial, em que o branco mostra para a sociedade seu “não-racismo” por ter um preto ao lado – este é assunto para o próximo texto

Eis o momento de falar sobre o tema, que vem me incomodando pois, aparentemente, no país onde há mais negros fora do continente africano, é normal não existir, por exemplo, novelas que girem em torno de protagonistas negros que interagem entre si.

Nossa, como assim? Dia desses, gastei um tempo relembrando todas as novelas que assisti até hoje, tentando lembrar quais delas tiveram um casal negro como protagonista. Se considerarmos que Isabel (Camila Pitanga) e Zé Maria (Lázaro Ramos), em Lado a Lado, eram os protagonistas junto de Laura (Marjorie Estiano) e Edgar (Thiago Fragoso), essa foi a primeira novela em que negros protagonistas interagiam entre si afetivamente. Nada da empregada que namora o porteiro ou o motorista. Eles eram um casal de protagonistas numa narrativa complexa, repleta de altos e baixos, inclusive no que diz respeito ao amor, ascensão social, relações familiares e enredo como um todo.

Ellen (Tais Araujo) e Foguinho (Lázaro Ramos) em cena de Cobras e Lagartos (Foto: TV Globo / Maria Elisa Franco)

Em Cobras e Lagartos, houve uma dobradinha de Taís Araújo e Lázaro em papéis com destaque na novela, formando um casal que foi ganhando cada vez mais visibilidade no enredo graças à atuação e à química dos dois. Mas eles evidentemente não eram os protagonistas. Enquanto em outros países as narrativas com protagonistas negros fogem do padrão heteronormativo, aqui no Brasil, mesmo com a quantidade de negros no país (e de atores negros), isso ainda é raro para o mais “básico” que é uma “mocinha” e um “mocinho” negros, com seus dramas, idas e vindas.

Por mais que existam inúmeras narrativas com questionamentos contemporâneos como “reveja o amor romântico” ou “reveja a heteronormatividade”, eles se limitam a protagonistas homens brancos se relacionando com mulheres brancas, enfrentando dramas que giram em torno de inveja, dinheiro, desejo e traições, sem grandes questionamentos.

Exceções são séries como AntôniaCidade dos HomensSexo e as Negas e, atualmente, Mister Brau, todas protagonizadas por negros. A questão é que, no enredo das séries, isso pode até acontecer, mas, no enredo de novelas, produtos com muito mais audiência, visibilidade e publicidade, é raro ver pessoas negras vivendo esses dramas cotidianos.

Recentemente, a artista Nicholle Kobi veio ao Brasil e contou numa palestra que, durante sua carreira como ilustradora, recebeu negativas e até acusações de ser “racista” por ter desenhado, por exemplo, uma mulher negra coroando seu parceiro negro. Isso me faz pensar que existe um grande medo, não só nacional, dado que Nicholle é francesa, quando as pessoas veem um casal negro _mesmo que seja numa ilustração.

Em 2016, numa entrevista à RFI Brasil, o ator Antonio Pitanga destacou que atores negros como ele não conseguiam espaço para atuar na teledramaturgia com seus filhos, pois, para negros, apenas os mais jovens recebiam destaque, diferente do que ocorre com atores brancos, que continuam atuando mesmo depois de certa idade. Pitanga afirmou:

“Os atores negros entram de pano de fundo e, quando aparece um Lázaro [Ramos], uma Camila [Pitanga], uma Taís [Araujo], acabou. Não tem mais lugar para um Milton [Gonçalves], um Pitanga, um Haroldo Costa. São só os jovens que estão aparecendo, graças a muitas de nossas lutas. Na dramaturgia, você pode ver um Tarcísio Meira atuar ao lado de um filho do Tony Ramos ou de um neto do Edson Celulari. É um caminho natural, que acontece quase normalmente. Eu comecei antes do Tarcísio Meira, mas os espaços que ele teve foram muito maiores do que os meus. É claro que não é um problema dele: é um problema do sistema.

Pitanga completa ainda dizendo que negros vivem na teledramaturgia em verdadeiros guetos, sendo apenas pano de fundo isolado sem família:

“Quando o dramaturgo escreve, ele pensa no mundo dele. E eu não estou no mundo dele. Eu entro como empregado, como serviçal, ou quando o escritor é muito avançado, ele coloca uma família negra. Mas, em geral, colocam o ator negro sem família mesmo.

Já o Tarcísio, o Tony Ramos, a Fernanda Montenegro sempre vão ter uma família. Quando chamam um negro, é para ficar em algum gueto da novela. Eu sou um ator, eu não sou um ator negro. No momento em que, na dramaturgia, só existe espaço para o “ator negro”, é porque há alguma coisa de muito errada.”

Nicholle Kobi: a ilustradora francesa já foi chamada de racista por colocar casais negros como protagonistas de seus desenhos

A pesquisa A Raça e o Gênero nas Novelas dos Últimos 20 Anos, do Instituto Gemma, mostra que, entre 1995 e 2014, na Rede Globo, nenhuma novela teve menos que 81% de personagens brancos em média por ano. A presença de negros não chega sequer a 50% _num país com 50% de população negra. Além disso, há novelas em que todos os personagens centrais são brancos.

Deus Salve o Rei é um exemplo da ausência total de negros no elenco principal. Já Lado a Lado, segundo a pesquisa do Gemma, é a novela com mais personagens não-negros já exibida, mesmo assim, com apenas de 31% do elenco.

Outro dado que chama a atenção é que, dos 20 anos de novela que pesquisei, as atrizes não brancas entre as sete protagonistas são Taís Araújo, Camila Pitanga e Juliana Paes. Seria assustador eu dizer que apenas três brancas protagonizam 20 anos de novelas. Mas, no caso das não brancas, isso é possível pois o apagamento racial é enorme e poucos se incomodam com isso.

É vergonhoso a falta negros vivendo histórias do dia a dia, em que, famílias negras, negros se separam e voltam; se apaixonam por outros; vivem problemas no trabalho; ou descobrem que são ricos pois herdaram um dinheiro de algum tio; afinal, claro que negros são impactados por questões estruturais, mas não deixamos de ser humanos, com problemas de humanos. E a ausência dessa naturalização sendo retratada em novelas impacta no fato que somos desnaturalizados nas ações mais comuns de nosso cotidiano.

Ahh você gosta de design de objetos? Nossa, não sabia que tinha pessoas negras que gostavam disso!
Nossa, seu cabelo é tão legal, posso tocar? Nunca tinha visto.
Nossa, você e seu namorado são tão bonitos. Posso tirar uma foto de vocês?
Nossa, de quem é esse cachorro? È seu?

Somos comuns, somos humanos, nossas vidas existem em 2018 e não apenas nas narrativas que querem retratar a escravidão, mas, mesmo em meu cotidiano, em meu bairro, no centro de São Paulo, tenho de lidar com uma série de questionamentos que me colocam na categoria “exótica”.

Isso é reflexo também do que acontece nas novelas, em que, no geral, negros, não são retratados com naturalidade. As tramas em exibição na TV atualmente continuam insistindo na narrativa do casal interracial que sofre muito com as diferenças sociais e raciais dos envolvidos, em que a parte negra constantemente sofre racismo, seja da sociedade, seja dos familiares. E a parte branca é apresentada como “oprimida” por ser branca e não aceita pelos indivíduos negros que compõem a família do outro lado.

Todos os dramas afetivos que envolvem negros em novelas giram, em sua maioria, em torno das questões de relacionamentos interraciais, forçando a ideia de que é o indivíduo branco quem nos humaniza.

Ou, pior, que é necessário mostrar apenas um modelo afetivo em evidência em novelas, filmes e até mesmo comerciais de segundos, em que indivíduos brancos que se relacionam com negros são colocados num patamar acima de humanidade. Na história contada nas novelas, a parte negra só existe e tem sentido quando encontra o amor branco _ os heróis que vencem o racismo já que “amor não tem cor”. E se “amor não tem cor” é porque todos não somos racistas e vivemos numa sociedade da interação racial.

A questão aqui não é impedir a representação de relacionamentos entre pessoas brancas e negras, mas tentar compreender que, por trás do discurso midiático, da “história única afetiva”, em que apenas relacionamentos interraciais recebem destaque em novelas, está se naturalizando o ideal da democracia racial, que é uma das bases do porquê o racismo no Brasil é mantido. No fundo, mesmo que o IBGE aponte que seja comum a união de negros com negros, aparentemente existe um medo de casais negros ganharem destaque.

É a coisa mais natural negros se relacionarem com negros nas diversas formas de afetividade, inclusive nas que fogem do padrão heteronormativo. Mas existe um medo branco, social e coletivo, de que nosso afeto seja representado. O medo de nos fortalecemos coletivamente e também individualmente, pois a possibilidade de construir afetos com nossos semelhantes diz muito sobre nosso amor próprio.

Outro dia, vi uma moça negra pedindo outra moça negra em casamento em meu Facebook. Pensei: quando será que vamos contar essas histórias? Pensei o mesmo quando vi um casal negro superbonito atravessando a avenida Paulista: qual será que é a história deles? Como será que meus avós paternos viveram seu amor? Eu posso imaginar isso, até mesmo quando me olho no espelho com meu parceiro. Mas acho injusto como nossas inúmeras possibilidades de afeto, troca e narrativas são ainda apagadas. E realmente não acredito que é por banalidade esse silenciamento. Outro dia, me deparei com um texto de Nicole Moore para o Huffigton Post, Black Love Matters in Film Too. No primeiro parágrafo, ela escreve:

“O programa recente Book of Negroes (Livros dos Negros) quando Aminata Diallo disse para seu antigo senhor de escravos ‘eu amo  aquele escravo.. livremente’, ela não estava apenas demarcando seu amor por seu marido africano, ela estava se comprometendo com um ato de resistência. Manifestar o amor deles era uma expressão radical de liberdade para escravos que nem as correntes poderiam suprimir.”

Moore entende que a união de pessoas negras tem um fator de resistência numa lógica racista. Aparentemente, pessoas brancas também entendem isso quando se negam a retratar uniões entre negros, que fortaleçam nossos laços familiares e, claro, humanizem nossas vidas e nossos cotidianos.

Existe um ato de liberdade em nossa união, que ainda enfrenta resistência em ser mostrado. Afinal, segundo um estudo do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), consumir ficções com personagens mais diversos podem provocar empatia no espectador e contribuir para desconstruir preconceitos.

Já um outro estudo realizado pela Creative Artists Agency (CAA) descobriu que filmes americanos com elencos racialmente diversos ganham mais dinheiro do que filmes cujos elencos não são tão diversos. Então, parece que não somos só nós negros que estamos perdendo com a ausência de multiplicidade nas narrativas que envolvem personagens negros.

 

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