‘Queremos ir da resistência ao poder’: Francia Márquez Mina, candidata à Vice-Presidência na Colômbia, busca inédita vitória da esquerda no país

Líder social, feminista, militante antirracista e defensora do meio ambiente, companheira de chapa do Gustavo Petro pode tornar-se primeira mulher negra a chegar ao posto

Ela é a grande revelação da campanha presidencial colombiana. Num país ainda profundamente conservador, a líder social, feminista, antirracista e defensora do meio ambiente Francia Márquez Mina, de 40 anos, obteve mais votos do que os pré-candidatos de centro e direita nas eleições primárias de meados de março, e com um resultado surpreendente (783 mil votos) tornou-se companheira de chapa do candidato à Presidência Gustavo Petro (senador e ex-guerrilheiro), da aliança esquerdista Pacto Histórico, à frente nas pesquisas para as presidenciais do próximo dia 29 de maio.

“Estamos revelando o verdadeiro rosto de uma sociedade racista, patriarcal e classista”, disse Francia em entrevista ao GLOBO, afirmando esperar que o povo brasileiro vote “a favor de sua dignidade”.

O Brasil também vive uma campanha eleitoral muito polarizada, entre o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Lula. A senhora acha que o resultado na Colômbia terá impacto na região e, especificamente, no Brasil?

Em primeiro lugar, sou uma mulher afrodescendente, líder feminista e defensora dos direitos humanos. Durante a campanha, tive a oportunidade de conhecer mulheres afrodescendentes do Brasil, que também estão lutando em cenários políticos. O Brasil é um dos países com mais presença de população afrodescendente na América Latina, e se ela abrir espaços na política no Brasil, como estamos fazendo aqui, reconhecendo o racismo sistemático e estrutural, a exclusão, a marginalidade, seria muito importante. Aqui estamos reconhecendo os que eu chamo de “ninguéns”, os que sempre fomos negados, como no Brasil, e claro que um resultado aqui terá influência lá. Primeiro vamos consolidar a paz, porque tivemos avanços, mas hoje as pessoas estão vivendo novamente o conflito armado. Resolver o problema da guerra na Colômbia vai irradiar positivamente para toda a América Latina. Na questão ambiental, existe uma conexão entre Brasil e Colômbia que tem a ver com a Amazônia. Se tivermos uma política de proteção de nossa Amazônia aqui, isso terá impacto lá, porque será feito por um governo de transformação. A questão das drogas também, e nós queremos propor outro caminho. A política de proibição só serviu para que o dinheiro termine nos bancos, mas os mortos são de nossos territórios. Temos de legalizar. Nosso programa de governo é transformador. A luta das mulheres, em termos de nossos direitos, é a mesma das mulheres no Brasil, dos quilombolas. Queremos a terra para que nossos filhos não morram de fome, para que as pessoas vivam com dignidade.

Sua candidatura gerou uma reação conservadora?

Nada aumentou, o racismo estrutural sempre existiu, mas estava acomodado, acobertado. Minha candidatura evidencia esse racismo. Estamos revelando o verdadeiro rosto de uma sociedade racista, patriarcal e classista. Não é fácil ter de viver com tantas agressões, ataques. Se metem com nossa cor de pele, com nossa humanidade, com o fato de ser uma mulher negra. Reconhecer isso já é um avanço.

Qual é sua relação com a política brasileira e o que a senhora espera que aconteça no Brasil?

Mais do que uma vitória da esquerda, ou da direita, espero uma vitória do povo brasileiro, a favor da dignidade, da justiça social, da vida e da paz. Se tivéssemos direitos, não estaríamos nos expondo numa campanha política. Não é fácil sendo mulheres, e menos ainda mulheres negras, fazer uma campanha em meio a um conflito armado. Em menos de um mês, recebi três ameaças de morte. Além de injúrias e calúnias. O presidente do Senado me relacionou com o Exército de Liberação Nacional (ELN), pelo fato de que eu vivi em regiões que padeceram o conflito armado. Tudo o que não é elite, é guerrilha neste país. Assim assassinam líderes sociais e ambientais. A nossa é uma aposta pela vida. Esta é uma luta dos povos historicamente marginalizados. Hoje esses “ninguéns”, como diz [o escritor uruguaio] Eduardo Galeano, os que valem menos do que as balas que os matam, poderemos ter voz para transformar situações de injustiça histórica. Isso é o que importa.

A senhora conheceu Marielle Franco?

Conheci a figura de Marielle depois de seu assassinato. Conheci sua irmã. Mas sempre tive relações com mulheres negras do Brasil, com povos indígenas da Amazônia. Falamos de Marielle Franco, porque a luta das mulheres latino-americanas é uma luta de articulações, o que aconteceu com Marielle acontece aqui na Colômbia todos os dias, com mulheres afrodescendentes, camponesas, das comunidades LGBT. Todos vivemos as mesmas políticas de opressão e morte. Estamos lutando pela vida e por um movimento de transformação.

A senhora é uma ativista ambiental. Como avalia a política do Brasil em matéria de meio ambiente?

Me preocupa o que acontece na Amazônia brasileira, e também na colombiana. Estão queimando ecossistemas fundamentais para a vida, essenciais para a Humanidade. Os governos devem pensar numa política mais cuidadosa, seja esquerda ou direita, muitos continuam estimulando atividades de extração da terra. Temos de pensar num desenvolvimento sustentável.

Qual seria a política de um eventual governo de Petro sobre a Venezuela de Maduro?

Não vamos nos meter na autonomia e na soberania de um povo, a Venezuela terá de resolver seus problemas. Mas existe uma situação de fronteiras latente. Quase 12 milhões de pessoas, entre venezuelanos e colombianos, foram afetados pelos conflitos bilaterais de dois governos. Temos de garantir os direitos das pessoas. Tínhamos uma relação histórica e nossa proposta tem a ver, primeiro, com resolver as brigas e conflitos entre dois países que são irmãos. Colômbia, Venezuela, Brasil, Equador, Peru, são países irmãos. Frente às crises temos de ter um modelo econômico de bem-estar, comum. Resolver o problema do conflito armado na Colômbia, sem dúvida, vai contribuir a desestressar muitos dos nossos conflitos.

Como o Pacto Histórico propõe terminar com a guerra na Colômbia?

Temos de resolver o problema das drogas, e o caminho é a legalização.

A senhora quer dizer a legalização total das drogas?

A legalização da coca e da maconha. Aqui a maconha já começou a ser legalizada, a pergunta é para quem estão concedidas as licenças? As licenças não estão chegando às comunidades que foram vítimas do conflito armado, da política antidrogas e do narcotráfico. Temos de repensar a política de drogas, temos de tirar a gasolina da guerra, porque o narcotráfico financia a guerra e a violência.

A esquerda nunca chegou ao poder na Colômbia. Por que, desta vez, a senhora acha que as chances de vencer são reais?

Como no Chile, e em muitos outros lugares, as pessoas cansaram de sofrer, se cansaram das promessas da elite, das 47 famílias que nos governaram a vida inteira. Se cansaram da guerra, porque continuam matando pessoas todos os dias. As pessoas estão fartas e querem mudanças. Minha candidatura ganha fôlego por isso, porque eu venho desses lugares dos excluídos.

Num eventual segundo turno, serão todos contra Petro e Francia…

Sim, claro, mas veja, eu já estive entre a vida e a morte, o que pode ser pior? O que pode ser pior os atentados que sofremos, as crianças que morrem, não temos nada a perder. Entendemos que a política não se esgota este ano, que esta eleição é parte de uma luta histórica, que a elite não sabe fazer política sem usar a violência, o medo. Que uma mulher negra, empobrecida, venha disputar um lugar que consideravam próprio incomoda. Teremos de trabalhar até o final. Sabemos que vão gastar muito dinheiro para impedir nossa eleição, e nossa esperança é de que o povo nos ajude a ganhar e a começar a escrever uma nova História neste país.

A Colômbia já foi cenário de assassinatos em campanhas políticas. A senhora tem medo?

O medo é o que semearam, sempre. Se nos deixarmos aterrorizar nunca haverá uma mudança. Queremos semear esperança, ir da resistência ao poder. Queremos que a dignidade seja costume, viver saboroso (seu lema).

Seria possível uma relação entre um governo de Petro com Bolsonaro?

Vamos respeitar a autonomia do povo brasileiro. Dialogar em meio às diferenças é parte do caminho, mas isso não significa ser aliados de um governo que violenta os direitos dos povos e da natureza.

+ sobre o tema

É a segurança, estúpido!

Os altos índices de criminalidade constituem o principal problema...

Presidente da COP30 lamenta exclusão de quilombolas de carta da conferência

O embaixador André Corrêa do Lago lamentou nesta segunda-feira (31)...

Prefeitura do Rio revoga resolução que reconhecia práticas de matriz africana no SUS; ‘retrocesso’, dizem entidades

O prefeito Eduardo Paes (PSD) revogou, na última terça-feira (25), uma...

Decisão de julgar golpistas é histórica

Num país que leva impunidade como selo, anistia como...

para lembrar

Embate entre tucanos por Aécio está longe de terminar

Apesar do esforço do governador de Minas Gerais, Aécio...

Brasil registrou 338 casos de violência política na campanha de 2024, diz levantamento

A campanha eleitoral de 2024 registrou um número recorde...

Para ex-comandante-geral da PM do Rio, “a vida humana não é uma prioridade no Brasil”

Ibis Pereira fala sobre os vários aspectos da crise...

Marcia Tiburi : “Estamos numa nova ditadura”

Artista plástica, professora de filosofia e escritora, Marcia Tiburi faz...

A ADPF das Favelas combate o crime

O STF retomou o julgamento da ADPF das Favelas, em que se discute a constitucionalidade da política de segurança pública do RJ. Desde 2019, a...

STF torna Bolsonaro réu por tentativa de golpe e abre caminho para julgar ex-presidente até o fim do ano

A Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu nesta quarta-feira (26), por unanimidade, receber a denúncia da PGR (Procuradoria-Geral da República) e tornar réus o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL)...

Comitê Quilombola da 2ª Marcha das Mulheres Negras é lançado em Brasília

Mulheres quilombolas de todo o país lançaram, nesta terça-feira (25), o Comitê Quilombola da Marcha das Mulheres Negras 2025, que acontecerá em novembro. O...
-+=