Querido atleta branco

Foi com enorme desprazer que me deparei com a repercussão daquela sua postagem no SnapChat. Aquele vídeo no qual você compara a cor negra do seu colega de equipe, Angelo, a aparelhos defeituosos e a sacos de lixo. Estou ciente de que você já pediu desculpas pelo mesmo e que a pessoa negra ofendida diretamente aceitou suas desculpas, mas sinto lhe informar que esse pedido não significa nada. Pra ser sincero, depois de ter visto o lastimável vídeo, dizer que sente-se muito não dá nem pro começo.

Por Leopoldo Duarte Do Portal Fórum

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Imagino que você possa estar achando que eu não tenho nada a ver com isso, mas é exatamente por isso que escrevo, para compartilhar um segredo bastante óbvio: você não feriu somente ao Angelo.  Sempre que alguém é atacado pela cor de sua pele, TODAS as pessoas que se identificam com essa etnia são também feridas em sua dignidade. As suas palavras não diziam respeito somente a ele, elas atingiram a mim, meus amigos e amigas negras, nossos pais, avós e familiares negros e boa parte de um continente inteiro.

O simples fato de você ter declarado que tudo não passou de uma brincadeira é flagrante do pouco caso que você faz sobre o assunto. Pessoas como eu e o Angelo crescemos cercados com esse tipo de “brincadeira” e se você estivesse interessado, saberia o quanto elas podem machucar. O tipo de coisa que bons amigos sabem uns sobre os outros.

Choque de realidade: não basta citar um amigo ou amiga negros, é necessário ser íntimo deles também para conversar sobre esse tipo de coisa. E ainda nada é tão racista quanto alguém que se acha imune ao racismo enraizado da nossa cultura.

Em outras circunstâncias eu diria que você deve saber como é enfrentar engraçadinhos sem noção, visto o tipo de gracinhas que você deve ouvir acerca da sua sexualidade devido a sua modalidade desportiva, mas assistindo ao vídeo, fica bastante escuro que você pouco se importa em respeitar os limites dos outros. O desconforto e irritação do Angelo são óbvios e, ainda assim, você persistiu, fez um pedido cínico de desculpas e, não satisfeito, não viu problema algum em publicar o vídeo numa rede social.

Sei que os últimos dias não devem estar sendo fáceis, mas acredite, poderia ter sido pior… Você poderia ter feito piadas antissemitas, e aí, meu caro, o seu emprego seria a menor das preocupações. Perdoá-lo seria inaceitável pois, como diz o Emicida, enquanto “a dor dos judeus choca/ a nossa vira piada”. Em menos de um mês as pessoas se esquecerão de você e por aqui é mais aceitável ser racista do que ser associado ao nazismo.

Talvez isso seja o que mais me dói nessa história toda: a certeza de impunidade. Parece que junto com a ideia de que nós negros somos inferiores, o racismo também sustenta a crença de que somos pré-dispostos a perdoar tudo e todos sempre. Não importa o mal feito. Parece que depois de séculos de desumanização e exploração somos obrigados a relevar tudo, a abdicarmos a qualquer noção de injúria, a levar toda humilhação na esportiva… Sinto lhe informar, mas demonstrações de racismo não são pecados a serem expurgados através do perdão. É crime! Portanto, guarde suas lágrimas para o juiz. #CryMeARiver

Mas não se preocupe, se por um lado eu considero absurdo uma pessoa como você continuar representando o Brasil internacionalmente, reconheço que o racismo a brasileira não poderia estar melhor representado. O que me conforta é que enquanto o Angelo será imortalizado pelo seu recente campeonato, muitos jamais esquecerão a sua infeliz e incompreendida brincadeirinha. A justiça brasileira é muito bem humorada, já até absolveu um pseudo-comediante que chamou um negro de macaco porque o seu intuito era fazer rir…

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