Quilombismo é o principal movimento negro do Brasil, diz novo presidente da Fundação Palmares

Instituição precisa inovar e vai trabalhar com funk e rap, afirma João Jorge Rodrigues

FONTEFolha de São Paulo, por Tayguara Ribeiro e Marina Lourenço
O presidente da Fundação Palmares, João Jorge, em seu gabinete; "vamos precisar muito do apoio de empresa privada, de fundação privada, de parlamentares, de emendas" - Pedro Ladeira/Folhapress

Principal órgão de preservação e fomento da cultura negra no país, a Fundação Cultural Palmares pretende estabelecer uma nova relação com os povos quilombolas do país —a instituição é a única responsável pela certificação das comunidades.

“O quilombismo é o principal movimento negro desta nação depois da luta indígena. Nenhum outro movimento social existiu em 1600, 1700, 1800, 1900 a 2000, 2020 que não fora esse, o quilombismo”, afirma em entrevista à Folha o novo presidente da fundação, João Jorge Rodrigues. “Não há desenvolvimento no país sem que os 104 milhões de afro-brasileiros se desenvolvam.”

Conhecido por fundar o Olodum, ele assume o órgão em meio a uma crise. Durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL) —sobretudo no período na qual foi comandada por Sérgio Camargo— a fundação se envolveu em polêmicas como censura de livros, denúncias de assédio moral e embates com lideranças do movimento negro.

O novo chefe da Palmares afirma estar, aos poucos, recuperando a credibilidade da instituição e afirma que pretende investir em temas abandonados pela gestão anterior —cita como exemplo o funk e o rap.

Em qual situação encontrou a Fundação Palmares, ao assumir o cargo? Devastação do ponto de vista físico e contentamento dos funcionários. E estrutura geral muito ruim. A respeitabilidade estava na lona.

Logo após sua posse, o senhor cancelou algumas ações da gestão anterior. Há ainda outras medidas que serão revogadas? Durante a gestão anterior, foram cometidas várias barbaridades. Por exemplo, nós tínhamos aqui o nome de personagens importantes, vivos e falecidos, e foi feita uma portaria para retirar o nome dessas personalidades vivas, como se não tivessem nenhuma importância para o Brasil contemporâneo. Nós revogamos essa portaria.

Vamos fazer também o retorno da marca original da Fundação Palmares, um machado de dois lados, insígnia do orixá Xangô. As coisas simbólicas já estamos fazendo nestes cem dias do governo Lula [PT] e da ministra Margareth Menezes. Já vimos um prédio novo para a Palmares.

Qual é a prioridade deste início de gestão? Estamos organizando a casa, avaliando os recursos, buscando parcerias e dialogando com deputados e outros setores dos ministérios para construir uma forma de agir de maio em diante. Estamos conseguindo retomar a credibilidade da Palmares como instituição ligada à cultura brasileira.

Ou seja, cabe à Palmares juntar esses pedaços, do ponto de vista cultural e simbólico, e caminhar pensando no presente e no futuro. Por que o machado de Xangô foi retirado como símbolo da Palmares? Por conta de preconceito, de intolerância religiosa. Isso tem a ver com aquilo que temos de melhor, que são as diferentes formas de ser brasileiro.

Desde que foi trazida para Salvador, a população africana escravizada deu comida, mineração, agricultura, candomblé, samba, maculelê, capoeira [ao Brasil]. Demos tudo a esse país, durante mais de 300 anos. E depois da abolição, ainda estamos lutando por lugares de igualdade.

O quilombismo é o principal movimento negro desta nação depois da luta indígena. Nenhum outro movimento social existiu em 1600, 1700, 1800, 1900 a 2000, 2020 que não fora esse, o quilombismo.

Se você ouvir Silvio Almeida, Anielle Franco, Margareth Menezes e o João Jorge falando, em momento nenhum existe ódio. Ao contrário, estamos fazendo um encontro entre o Brasil e o Brasil profundo. Não há desenvolvimento no país sem que os 104 milhões de afro-brasileiros se desenvolvam.

No Brasil, existem mais de 6.000 comunidades autodeclaradas quilombolas, mas apenas 322 possuem títulos de terra. Como a Palmares pode ajudar neste processo? A questão quilombola, de posse da terra, parece simples ao falar, mas não é. A pesquisa, o laudo, a certificação e a ação do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] são um caminho demorado.

Precisa ser mais rápido e desburocratizado. Mas há uma série de percalços. Mesmo com a Constituição de 1988, demora —e não porque a Palmares ou o Ministério Público Federal não faz. É que exige paciência. Há possibilidade de acertos e erros.

A ideia é providenciar maior rapidez. Para isso, é importante convencer os governos federal, estaduais e municipais a agilizarem a posse da terra das comunidades. É incrível que o Brasil de 2023 ainda tenha disputa de terras quilombolas e indígenas. Se pensarmos no processo civilizatório, não deveria ser assim. Estes territórios não são de garimpeiros.

Na gestão anterior, foi dito que a instituição não ia trabalhar com funk e rap. Ora, vamos trabalhar com o Brasil moderno. Se ele se expressa com funk e rap, vamos trabalhar com funk e rap

João Jorge
Presidente da Fundação Palmares

Além de acelerar a certificação de terras, o senhor tem outros planos para os quilombolas? Estamos construindo políticas públicas, pleiteando um programa de qualificação. Também queremos lotar os quilombos de infraestrutura para conectá-los digitalmente, no sentido de dar acesso à informação e uma relação com a Palmares que seja full time.

O senhor criou um grupo de trabalho para avaliar e discutir mudanças no cadastro geral dos remanescentes dos quilombos. De que forma isso pode ajudar as comunidades? Esse cadastro pode ajudar a localizar quilombos e seus problemas. Vai nos dar a estimativa precisa de quantos são, como são, quem são e o que querem. É uma visão geral de como vivem os quilombos no Brasil e o que podemos fazer a respeito.

Para além dos povos quilombolas, a Palmares tem compromisso com a preservação e fomento da história e cultura negra no país. Quais são seus planos para esta atribuição? Nós temos muito o que fazer, mas acima de tudo precisamos inovar.

A Palmares de 1988 tinha como foco poucas coisas, como o quilombismo e o Quilombo dos Palmares. Agora, continuaremos a dar foco nisso, mas também à arte, à cultura, à ciência e à pesquisa. Lidar com novos beneficiários da Palmares e economia criativa.

Na gestão anterior, foi dito que a instituição não ia trabalhar com funk e rap. Ora, vamos trabalhar com o Brasil moderno. Se ele se expressa com funk e rap, vamos trabalhar com funk e rap.

A verba atual da Fundação Palmares é suficiente? A verba é pouca, pequena. O governo Lula se antecipou antes de iniciar o mandato e ajudou a destinar um valor um pouco maior para o orçamento [que aumentou de R$ 19,8 milhões para R$ 37,2 milhões]. Mas ainda assim vamos precisar muito do apoio de empresa privada, de fundação privada, de parlamentares, de emendas. A Palmares precisa de mais funcionários, recursos públicos, leitura jovem. Ser mais eficaz e tecnológica.

Embora a gestão de Sérgio Camargo tenha gerado uma crise na instituição e sido criticada por movimentos sociais, ele conquistou muitos apoiadores durante o mandato. Como o senhor avalia essa situação? Ele conquistou apoio do Brasil que gosta da violência, que é contra mulheres, negros, índios. Agora, vamos trabalhar com o que é concreto, a partir da noção de que populações africanas foram escravizadas no Brasil, de que quilombos surgiram como lugares de sobrevivência física e ideológica.

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