Quilombo dos milagres

Qualquer vacilo deixaria o maestro em maus lençóis. Corajoso, cheio de ideias transformadoras, lá estava ele em apuros, fuzilado pelos olhares dos negros que o rodeavam no Curiaú. A vida não é fácil para um forasteiro que chega a uma comunidade formada por 2.500 descendentes de escravos, distante 8 quilômetros de Macapá, no Amapá. A carga de submissão e racismo que a história colocou nos ombros daquelas famílias desde o século 18, quando os escravos começaram a chegar foragidos dos trabalhos no forte da cidade, parecia ter trancado seus sentimentos do mundo dos brancos. Isso até o maestro Elias Sampaio ver a luz.

Exausto de tentar convencer os adultos de que seus filhos poderiam formar uma orquestra ali mesmo, na única escola pública do antigo quilombo, Elias chamou as crianças para quebrar a tensão e lhes deu violinos, violas e violoncelos que jamais tinham visto. Elas vieram tímidas e passaram a fazer sons que foram ficando fortes e empolgantes, a ponto de finalmente abrir o sorriso dos pais. Ao final, foram aplaudidos e o maestro apresentou: “Com vocês, a Orquestra do Curiaú!”

Há seis meses, Elias trabalha com a primeira orquestra do País formada por descendentes de escravos. São 140 meninos e meninas com idades que vão de 8 a 17 anos. Para colocá-la em pé, mata dez leões por dia. Além de não ter a confiança dos quilombolas, chegou sem dinheiro, sem professor, sem instrumentos e sem sede. Começou então a operar um milagre.

A falta de dinheiro foi inicialmente suprida com um patrocínio da empresa de telefonia Oi, que cedeu ao projeto R$ 160 mil, valor não confirmado pela empresa. O convênio, no entanto, acabou no dia 31 de dezembro de 2012, com esperanças de ser renovado para o ano que vem. A Secretaria da Juventude do Amapá também prometeu uma verba emergencial que ainda não chegou. “A gente se vira”, diz Elias, sem tom de mendicância. Seu carro Spacefox é o único transporte do grupo e seu espaço interno é uma questão de necessidade. Da última vez, couberam dois contrabaixos, dez violinos, duas violas e dois violoncelos.

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A falta de professores foi vencida com uma estratégia que Elias já usava em outros dez pontos em que mantém seu projeto. Inspirado no programa venezuelano El Sistema, que revelou Gustavo Dudamel, o maestro mais reverenciado da atualidade, Elias fez uma limonada de açaí. “Não temos nenhum curso superior de música no Amapá”, diz ele. Sua saída foi trazer professores de fora, além de reforçar suas próprias aulas, para preparar o que chama de monitores.

Assim que acumulam certa carga de conhecimento, os próprios alunos passam a ensinar os mais jovens em aulas que não separam teoria de prática. A monitora Wayne Silva, 23 anos, ensina violino. Em uma de suas aulas, combinava turmas para que tocassem notas diferentes ao mesmo tempo, formando um único acorde. Simples, mas os segundos que o som durava valiam para deixar os menores emocionados com o que podiam fazer. “Eu digo a eles que é possível. Nós podemos ser uma grande orquestra”, fala Wayne.

A falta de confiança foi abatida aos poucos. Depois de ganhar o aval dos pais, Elias passou a conquistar os filhos, também geneticamente armados contra qualquer tipo de dominação. Se pedisse para um garoto buscar um instrumento, ouvia algo do tipo “mas a Lei Áurea já não foi assinada?” Elias resolveu então usar os instrumentos típicos dos negros em sua orquestra, mesclando violinos e sopros às caixas de marabaixo, o ritmo do Amapá. “Não dava para impor um repertório erudito e ignorar a cultura que eles tinham. Seria muito mais difícil”, conta o maestro.

Os instrumentos foram outro desafio. Com o que recebeu em patrocínio, o maestro conseguiu comprar apenas um kit de orquestra: 20 violinos, 8 violoncelos, 8 violas e 3 contrabaixos, além dos instrumentos básicos de sopro e percussão. Isso para ser usado em seus onze pontos de cultura. O que ele fez então foi um grande revezamento no qual cada criança passa apenas um dia da semana com o instrumento em casa. Se quiser estudar mais, precisa frequentar aulas em outros pontos e suar. Não é a situação ideal para um jovem em fase de descoberta artística, mas o valor que eles dão para os momentos em que suas mãos podem tocar um violino aumenta em 10 vezes. “Isso mudou minha vida. É só o que eu quero fazer”, diz a violinista Larissa Lore, 13 anos. Seu objetivo? “Quero ser monitora.”

A criação dos monitores no sistema de Elias tem mais este efeito colateral. Os pequenos querem estudar mais para serem como os maiores. Ser monitor no Curiaú é ter status e ainda possibilita, quando se tem um patrocinador, receber um salário mensal de R$ 300.

As aulas normais também foram uma preocupação do projeto. Não adiantava aos garotos aprenderem um instrumento e deixarem de lado o que deveriam saber de Matemática e Língua Portuguesa. A regra baixada por Elias, então, foi clara: para ficar na orquestra, só os melhores. Ou, ao menos, quem tirasse notas de 6 para cima. Os garotos, extremamente competitivos, não querem ficar para trás. “Eu tive que melhorar na escola, e senti que a música mudou o jeito que eu falo com as pessoas”, diz Heverton da Paixão, 13 anos.

Elias tem mais sonhos. Quer formar uma orquestra com crianças de uma comunidade próxima a um lixão público. “Elas ficam uma semana sozinhas, sem os pais.” E deseja trazer o maestro Gustavo Dudamel para as terras do Curiaú. Vindo do homem que está mudando uma realidade sem um tostão nos bolsos, é melhor não duvidar.

 

Fonte: Estadão

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