Quintal. História de ninhos e revides

Por Allan da Rosa

E eu carpindo o quintal com minha coroa nesse fim de fevereiro. Abrindo na enxada a valeta de terra pras águas escoarem. Cavando, arrastando, eu mais Dona Ana entre uma pancada de goiaba bicada e um baque de manga, recordando minha Vó Carmelina que hoje descobri que benzia erisipela. Eu mais Dona Ana da Pureza afastando cadáver de ratazana e plastiqueira colorida, trocando receitas de chá e funções de emplastro (use folha de amoreira pra infecções). Eu mais Dona Ana na lida da enxada, barreando pé ligeiros com a lacraia amarela debaixo do tôco e sempre de rabo de olho pro risco no muro, marca das enchentes na altura do meu peito, as que levaram máquina de lavar e livros, arrastaram estrados e bichos amados, uns que comiam até fubá. Dona Ana da Pureza, 72 anos em uma casa margeada pelo córgo que tanto pisei procurando bola e tirando caco da sola.

Quintal de carpir, esse que hoje nem trisca a miragem de quem futura um cantinho pra morar, pra amar, pra colher e brincar. Se entalados entre vielas e prédios, às vezes cometendo a heresia de pisar no asfalto cada vez mais alargado pra passar aço em cima de pneu, arriscando trombada e atropelo, teto é devaneio largo… quintal então…

Aqui num país que teve um vencedor só em todas as últimas eleições municipais e estaduais e federal: as empreiteiras, mecenas de todas candidaturas. Campeãs e vices de norte a sul, se vacilar levando bronze também, estofando com as verdinhas os bonecos tratados pelas agências marqueteiras. E persiste nossa memória de ninhos e revides perfumada de quintal. Teimosia mais que nostalgia.

Assim, escrevi sobre quintal no meu recente livro “Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem”:

“Quintal: A roupa de algodão que se recolhe do varal com o pôr-do-sol, foi tocada, uma manhã e uma tarde, pelo vento; e o vento traz partículas do cheiro bom que há nos cantos do quintal. Aliás, perfume é delícia e privilégio de quintais que, pelas árvores regentes de seu espaço ou por vasos acarinhados e tratados como filhos (ou como pais e avós, mais velhos, reverenciados), espalham cheiro e são áreas especiais na memória afro-brasileira. O quintal media as intimidades da casa e as surpresas e ousadias da rua, externas. É onde se misturam as regras de fora e as condições de dentro, quase sempre trazendo um certo drama, uma necessidade de arranjo. Assim, ajunta os símbolos que expressam um esforço pela constância, pela resistência e pela manutenção de valores no seio da própria passagem do tempo, buscando sínteses, elos, pontes.(…) O drama aflora por vezes entre os que dançam nas lutas da vida, mas também pode surgir entre os porta-vozes de posturas e de linhagens diferentes que se encontram no mesmo chão batido, às vezes coberto, onde ministram sua celebração mais solene. A função ritmada, no quintal onde se esquenta o couro e se afina o tambor, que já começa a se testar chamando a confraternização musicada e dançada (o “convívio”, como se diz em Luanda), gera conflitos, desafios e paz. É atrativa para choros e gargalhadas (e talvez também para a orgia, símbolo também da estrutura dramática). Quintal acolhe os chegados, mas tem garantidos os segredos de dentro da morada. Antes da festa negra, um quintal é preparado, rezado. Quintal que em seus fundos dá parição ao samba amigo e à ginga, lugar mais protegido da repressão e dos incômodos, por ventura racistas, que acometeram e acometem bravamente as manifestações culturais musicais e religiosas negras. Quintal que desemboca na boca do portão, que às vezes se confunde à calçada, ao passeio. Quintal, espécie de entre-lugar que traz a co-incidência e os valores que conjugam o fora e o dentro. Quintal que, tão bom anfitrião do ritmo e das rodas, sintetiza passagens, ostenta árvores soberanas e robustas, ou sorrateiras e portadoras de segredos”.

Ê quintal… Foi nos quintais em Cabo Verde, lá pros miliquinhentos, que se deu uma primeira grande mocambagem – ali a revolta de quem já tinha se lascado embarcado em navios à força pra usar a força no açúcar dos outros, no que ainda era o sistema de ‘quintê’ na exploração da portugália escravista, que então cabreira e experimentada impôs o sistema moinho-casa grande- senzala. Quintais: tão importantes pra nossa história, guardando nos fundos a reunião, o cultivo, a bença. Onde não se está mais no solto das malícias e tretas da rua mas também ainda não se adentrou no íntimo do quarto, no calor da cozinha. Quintal, ali os vasos de cheiro ou o esgoto aberto, a mistura das regras de fora com as condições de dentro.

Pisando tempos de asfalto, elevador e remoção forçada, era da tela e do teclado reinantes, é téquinho de quintal que prevalece nas artérias arteiras e em tantos vasinhos de beira de janela. Verde urbano num esconde-esconde pinicando pescoço e coçando braço, com meu moleque pelos terrenos baldios nas beiradas do glorioso Jabaquara.

Fonte: Á Beira da Palavra

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