Rachel – a branca americana que quer ser negra – nos coloca a todos em xeque

Uma profusão de assuntos, cabeça fervilhando, mil leituras para colocar em dia, inclusive a última encíclica papal sobre as questões climáticas, e me debruçar com mais atenção sobre a história da mulher branca que se passou por negra durante anos.

no Jornal do Brasil por Mônica Francisco *

Ora, essa última muito interessante. Ainda mais nestes dias de defesa incondicional das chamadas liberdades, assim no plural, e nossa aposta nas auto declarações. Em um mundo onde ansiamos pela tão propalada, cantada e guerreada liberdade, ou melhor a liberdade de expressar-se, vem a calhar o assunto, ainda que precise me debruçar mais sobre ele.

A norte americana Rachel Dolezal deseja “ser” negra, assim como todos os dias aqui no Brasil assistimos à busca pelo embranquecimento, que sabemos enriquece a indústria cosmética, principalmente no que se refere aos cabelos, com os famosos alisamentos, alguns ditos “definitivos”, inicialmente institucionalizada como política de Estado, traduzida na facilitação e estímulo à entrada de imigrantes europeus, tem na “beleza” seu maior aliado.

Sabemos que  por aqui em nossas paragens, a maioria das revistas e produtos estampa majoritariamente mulheres não negras, tendo a mesma situação nas peças de marketing televisivo, direto ou em outdoors e totens espalhados pelo país.

O nome já diz: definitivo, aquilo que vai definir, ou seja, a possibilidade de que algo defina alguém como pertencente a uma raça, é muito tolerado e até estimulado se isso convier ao que se costuma nomear de “supremacia branca”, ou até de “branquitude”, quase um estado mental, uma ideologia, que é perfeitamente aceita.

Não é à toa que em um país dito defensor das liberdades como o nosso, as pessoas negras não possam utilizar o “seu” cabelo, o cabelo que é peculiar e natural aos que são descendentes de povos negros do continente africano.

E segue-se de maneira silenciosa nas estruturas da sociedade mundial, e aqui no Brasil, o racismo institucionalizado é extremamente eficaz nisso, porque vai produzindo um discurso de aversão ao que diz respeito ao fenótipo negróide, como a “doma” de cabelos “rebeldes” e soluções milagrosas contra cachos persistentes.

É na “boa aparência”, proibida de ser redigida em anúncios de emprego. mas posta em prática na seletividade dos postos de trabalho, que mora o perigo. Há uma divisão social da cor nos postos de trabalho, mas nossos olhos são treinados para não vê-la. É só apurar o olhar e dar uma bela passeada pelos shoppings uma tarde dessas.

A agitação acontece, e se dá  por conta da ruptura e o mal-estar que Rachel produz ao anunciar-se negra, defender e declarar sua “negritude”, assumida por afinidade e conformadora da sua própria identidade, e mais ainda, norteadora das suas opções de vida. Ela não mentiu, ela não se sentiu mentindo, para ela é verdade absoluta, quem ela é.

Para nós por aqui, não é problema nenhum  e até achamos graça do jogador de futebol da moda, que se auto proclamou branco por conta da cor de seus olhos. Carnavalizamos, e tá certo, ele é branco.

Rachel nos coloca a todos em xeque, revelando uma capacidade espetacular de se colocar literalmente no lugar do outro, do diferente. Sua extrema capacidade de viver sua humanidade em potência elevada e  sentimentos e conceitos tão abstratos como liberdade, reconhecimento, e igualdade, de forma tão concreta, tiraram do eixo, tanto a população negra, quanto  e principalmente a população branca.

Nós por aqui assistimos à potência mundial, racista, xenófoba, de longe e com um certo olhar de reprovação e assombro, e continuamos tocando a vida na nossa bela e ensolarada democracia racial.

“A nossa luta é todo dia. Favela é cidade. Não aos Autos de Resistência, à GENTRIFICAÇÃO e ao RACISMO, ao RACISMO INSTITUCIONAL, ao VOTO OBRIGATÓRIO e à REMOÇÃO!”

*Membro da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras e Consultora na ONG ASPLANDE.(Twitter/@ MncaSFrancisco)

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