Racismo alimenta terrorismo e conflito social na França

Atentados que mataram sete pessoas trouxeram debate sobre discriminação racial à tona

A França enfrenta uma crise institucional ao presenciar o jovem Mohamed Merah, cidadão francês, assassinar cruelmente seus compatriotas. À parte dos distúrbios psicológicos que Mohamed possivelmente sofria, a atitude radical do jovem é reflexo dos problemas raciais no país, afirmou ao R7 Pap N´Diaye, historiador francês especialista em formas de discriminação contemporânea e professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris.

– É possível conectar o aumento da presença de grupos fundamentalistas muçulmanos nos bairros mais pobres da França, onde se encontram a maior parte dos afrodescentes franceses, com o sentimento de ser segregado, esquecido pela república [governo], e ser estigmatizado [por ser negro ou muçulmano] pelo sistema.

Assim como Mohamed, Pap N´Diaye nasceu na França, mas é fruto de um casamento entre uma francesa e um imigrante senegalês. Por isso, ele é considerado, como muitos no país, um produto da mestiçagem entre europeus e africanos. N´Diaye diz ter sentido na pele as dificuldades para ser considerado de fato um francês apesar dos seus documentos não deixarem dúvidas quanto a isso.

– Muitos franceses me perguntam de onde sou. Quando respondo que sou de Paris, insistem na pergunta, dando a entender que um negro na França é necessariamente imigrante. Mas eu nunca sequer morei na África. Nasci e sempre reconheci a França como meu país. Não me considero um africano. É como se houvesse uma contradição em ter as características físicas africanas e ser francês.

O presidente da França, Nicolas Sarkozy, explicitou, nesta sexta-feira (23), a impressão conflituosa entre ser francês e as características físicas e religiosas do cidadão. Durante uma entrevista aos jornalistas, ele relembrou que os soldados mortos em um dos atentados cometidos por Mohamed eram franceses cristãos, apesar da aparência muçulmana. A afirmação induz ao entendimento de que há um padrão físico bem específico e determinado para os seguidores do Corão (livro sagrado dos muçulmanos) e da Bíblia.

Para o professor N´Diaye o perfil racista é fortemente negado pelo povo francês dificultando a compreensão do problema.

– Como não tivemos um regime como na África do Sul, onde houve o apartheid, ou como nos EUA em que vigoraram políticas segregacionistas até os anos 70, o francês comum nega que é racista.

O primeiro passo para solucionar o conflito racial na França é a aceitação de que ele existe. Assim, será a elaboração de políticas de inclusão, ainda na opinião do estudioso.

Passado de conflitos

O sentimento de segregação entre os franceses tradicionais e os de ascendência estrangeira é mais antigo do que se imagina. Em 1961, um massacre contra imigrantes do norte da África que protestavam contra a presença francesa na Argélia provocou a morte de 200 pessoas, segundo estimativas de organizações francesas de direitos humanos. O governo reconheceu 40 mortes apenas em 1998.

Em 2005, quando Nicolas Sarkozy era o então ministro do Interior da França, conflitos na periferia parisiense ganharam a atenção de autoridades e mídia do mundo inteiro. O levante se espalhou por outras grandes cidades francesas. Na ocasião, não houve nenhuma conexão com grupos religiosos. Os protestos eram reflexo da segregação existente nas cidades, onde os bairros mais afastados do centro não tinham a mesma estrutura que os bairros mais ricos.

O conflito durou cerca de três meses. Quase 9 mil carros foram queimados e aproximadamente 2.800 pessoas foram presas. Sarkozy conseguiu sair desta situação como herói ao manejar o conflito na condição de ministro. Pouco tempo mais tarde, o presidente se elegeu ao prometer dedicar seu governo para diminuir as desigualdades existentes no país. O caso de Mohamed e as afirmações de N´Diaye deixam claro que pouco ou quase nada mudou desde então.

– Na prática, pouca coisa mudou. O plano de Sarkozy acabou renovando alguns edifícios na periferia e reformando um ou outro espaço público, mas não houve de fato melhora nas condições de vida do afro-europeu na França. Pelo contrário, as falsas promessas do sistema educacional e da república continuam as mesmas e estimulam os conflitos sociais.

Esta situação alimenta as divergências entre franceses tradicionais e os franceses com ascendência (origem dos pais) de outra região do mundo. Grupos radicais islâmicos que vivem nas regiões mais pobres do país aproveitam a insatisfação popular causada pela segregação social e estimulam jovens a se levantar contra as autoridades.

– […] é possível dizer que na França existe o cidadão de primeira e segunda classe. Se olharmos como as pessoas são tratadas pelas instituições e como elas interagem no sistema educacional, acredito que os cidadãos não são tratados de forma igualitária. Existe uma urgência de que todos cidadãos franceses sejam respeitados e considerados como devem pelo governo. Mas estamos longe disso.

Para o professor, as políticas de integração não resolvem as tensões sociais, pois o público alvo da ação é formado por cidadãos franceses e não por imigrantes. O verdadeiro problema é o racismo, discriminação e segregação dentro do sistema. A elite política francesa ainda é muito conservadora e os afrodescendentes são pouco considerados e, por isso, pouco representados.

– A dificuldade dos políticos franceses é fazer com que a população formada por ascendência principalmente africana seja de fato inclusa na democracia do país.

Fonte: R7

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