Racismo, crise e sistema político

No que diz respeito a fenómenos como o racismo e a xenofobia, uma das interrogações preferidas dos meios de comunicação social e uma das mais difíceis de responder por parte dos cientistas sociais consiste em perguntar se há «mais racismo numa sociedade do que noutra».

Para responder a esta questão, o sociólogo francês Michel Wieviorka criou, nos anos 90, uma escala de intensidade do racismo que se baseia no seu grau de infiltração no sistema político e no Estado (L’Espace du Racisme, Paris, Seuil, 1991).

O primeiro nível, designado, pelo autor, por «infra-racismo», consiste nas situações onde, apesar de ser observável a presença e a reprodução de preconceitos raciais ou étnicos, o racismo é desarticulado; a violência racial é difusa, espontânea e muito localizada, sem o apoio de estruturas organizadas; a segregação e a discriminação confundem-se frequentemente com problemas sociais como a pobreza, o desemprego, a marginalidade ou a degradação e estigmatização de certos espaços urbanos.

No segundo nível, ou nível do racismo «aberto», este torna-se muito mais visível e mensurável. Os preconceitos e a rejeição de certas categorias de pessoas aparecem claramente nos inquéritos e nas sondagens de opinião. A discriminação é frequente e admitida em vários domínios do social, a segregação inscreve-se no espaço urbano e a violência torna-se repetida e tipificada. A actividade ideológica é mais explícita e conduz, frequentemente, à emergência de grupos organizados e ao aparecimento de publicações doutrinárias.

É a partir do terceiro nível que o racismo franqueia os limites do campo do político; transforma-se em acção organizada, condiciona os debates públicos e a agenda dos média; mobiliza franjas significativas da população e cria condições favoráveis à emergência da violência generalizada. A discriminação e a expulsão dos grupos vítimas tornam-se verdadeiros projectos políticos, relativamente aos quais a produção de «bodes expiatórios» raciais desempenha um papel considerável.

O racismo enquanto ideologia de Estado, ou «racismo total», ocupa o quarto nível. Uma situação na qual é o próprio Estado que se organiza em função das orientações racistas, estabelece programas de discriminação, de segregação e de expulsão, que inscreve as categorias vítimas na legislação e no funcionamento de todas as instituições e utiliza a violência na manutenção de uma ordem fortemente racializada.

Diversas pesquisas realizadas no âmbito das Ciências Sociais têm vindo a demonstrar que, em Portugal as manifestações de racismo, nomeadamente aquelas que vitimam a população imigrante de origem africana, oscilam entre os dois primeiros níveis. Ou seja, a maior parte das atitudes e comportamentos racistas dos portugueses relativamente aos imigrantes e aos seus descendentes, têm lugar – felizmente – fora do quadro do sistema político.

No nosso país o racismo segue de perto a distância crescente que separa as classes médias, que acedem ao consumo, à habitação, ao emprego estável, ao lazer e ao ensino em escolas «não problemáticas» – e que tanto discriminam e segregam socialmente como «racialmente» – e aqueles portugueses que, obrigados à suburbanidade, expostos à dissolução dos laços comunitários tradicionais e a uma convivência multi-étnica não prevista nas suas expectativas sociais e culturais, são mais vulneráveis aos posicionamentos de tipo racista.

Ao contrário do que foi apontado para explicar as manifestações de racismo que ocorreram nos países da Europa do Norte durante recessão da década de oitenta, a sensação de «concorrência económica» – isto é de ameaça ao emprego ou de abuso das prestações sociais – não parece constituir ainda, em Portugal, um factor de racismo anti-imigração.

O que se compreende pelo facto de, durante as últimas décadas termos vivido um período de baixas taxas de desemprego de os imigrantes terem vindo ocupar os postos de trabalho entretanto desertados pelos autóctones.

A associação, muito frequente noutras sociedades, entre racismo e nacionalismo, a presença de colectividades imigrantes percebida enquanto ameaça à identidade cultural nacional permanecem residuais em Portugal.

Não se pode falar nem de temor de uma qualquer invasão nem de ameaça à identidade nacional.

Aliás, o tema da ameaça, económica ou identitária, tão recorrente na literatura sociológica sobre estas questões, tem tido pouca expressão em Portugal.

É claro que as investigações mencionadas foram levadas a cabo num quadro de relativo crescimento económico, de grande necessidade de mão-de-obra imigrante e de consequente abertura à mão-de-obra estrangeira.

Na actual conjuntura económica e social, com o espectro do desemprego a ameaçar simultaneamente trabalhadores portugueses e imigrantes, não é de estranhar que a situação se venha a alterar significativamente.

Num ano onde diversas eleições terão lugar com um pano de fundo de crise, de recessão económica e de subida das taxas de desemprego para valores já esquecidos, é grande a tentação de certas forças políticas para enfatizarem discursos mais ou menos populistas, mais ou menos xenófobos, mais ou menos racistas de teor anti-imigração ou mesmo de reivindicação do repatriamento de certas categorias de trabalhadores imigrantes.

Embora seja de prever que a crise económica venha a dar origem a situações sociais dramáticas nas quais o racismo não estará, certamente, ausente, a preocupação de analistas, agentes políticos e responsáveis pelo combate ao racismo e pela inserção dos imigrantes deve sobretudo centrar-se nos efeitos de uma eventual «politização do racismo», isto é, da inscrição, no campo do político, de discursos que afloram posicionamentos racistas e que, por isso, potenciam ou mesmo amplificam o fenómeno que, como sabemos, existe na sociedade fazendo-o, por isso, «subir de nível».

Impõe-se nestas alturas, uma vigilância redobrada, por parte de todos, a quaisquer afastamentos dos princípios da cidadania democrática.

Fonte: Observatorio do algarve

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