Racismo e cultura: a leitura psicanalítica e política de Frantz Fanon

A comunicação “Racismo e cultura”, no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado em 1956, marca – e justifica – a opção pela ação política de Frantz Fanon.

Sem abandonar a gramática psicanalítica de Pele Negra, Máscaras Brancas* – talvez mesmo tomando-a por base -, este texto anuncia o ponto de virada de Fanon na exegese do racismo e suas consequências para a alma/psiquê dos oprimidos: depois do mergulho para dentro, o mergulho no mundo, o reconhecimento da necessidade da luta armada e da eliminação completa de qualquer traço de estruturas opressoras.

Além do texto completo, réplica de uma edição portuguesa de 1980, o registro radiofônico da voz firme de Fanon, um raro registro multimídia. As legendas em português foram feitas tendo por base a edição portuguesa acima mencionada, com algumas adaptações para o português do Brasil.

Segue o texto de Fanon

Racismo e Cultura [1]

A reflexão sobre o valor normativo de certas culturas, decretado unilateralmente, merece que lhe prestemos atenção. Um dos paradoxos que mais rapidamente encontramos é o efeito de ricochete de definições egocentristas, sociocentristas.

Em primeiro lugar, afirma-se a existência de grupos humanos sem cultura; depois, a existência de culturas hierarquizadas; por fim, a noção da relatividade cultural.

Da negação global passa-se ao reconhecimento singular e específico. É precisamente esta história esquartejada e sangrenta que nos falta esboçar ao nível da antropologia cultural.

Podemos dizer que existem certas constelações de instituições, vividas por homens determinados, no quadro de áreas geográficas precisas, que num dado momento sofreram o assalto direto e brutal de esquemas culturais diferentes. O desenvolvimento técnico, geralmente elevado, do grupo social assim aparecido, autoriza-o a instalar uma dominação organizada. O empreendimento da desculturação apresenta-se como o negativo de um trabalho, mais gigantesco, de sujeição econômica e mesmo biológica.

A doutrina da hierarquia cultural não é, pois, mais do que uma modalidade da hierarquização sistematizada, prosseguida de maneira implacável.

A moderna teoria da ausência de integração cortical dos povos coloniais é a sua vertente anátomo-fisiológica. O surgimento do racismo não é fundamentalmente determinante. O racismo não é um todo, mas o elemento mais visível, mais quotidiano, para dizermos tudo, em certos momentos, mais grosseiro de uma estrutura dada.

Estudar as relações entre o racismo e a cultura é levantar a questão da sua ação recíproca. Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Assim, há culturas com racismo e culturas sem racismo.

Contudo, este elemento cultural preciso não se enquistou. O racismo não pôde esclerosar-se. Teve de se renovar, de se matizar, de mudar de fisionomia. Teve de sofrer a sorte do conjunto cultural que o informava.

Como as Escrituras se revelaram insuficientes, o racismo vulgar, primitivo, simplista, pretendia encontrar no biológico a base material da doutrina. Seria fastidioso lembrar os esforços empreendidos nessa altura: forma comparada do crânio, quantidade e configuração dos sulcos do encéfalo, características das camadas celulares do córtex, dimensões das vértebras, aspecto microscópico da epiderme, etc.

O primitivismo intelectual e emocional aparecia como uma consequência banal, um reconhecimento de existência.

Tais afirmações, brutais e maciças, dão lugar a uma argumentação mais fina. Contudo, aqui e ali, vêm à superfície algumas ressurgências. É assim que a “labilidade emocional do Negro”, “a integração subcortical do Árabe”, “a culpabilidade quase genérica do Judeu”, são dados que se encontram em alguns escritores contemporâneos. Por exemplo, a monografia de J. Carothers, patrocinada pela OMS, exibe, a partir de “argumentos científicos”, uma lobotomia fisiológica do Negro de África.

Estas posições sequelares tendem, no entanto, a desaparecer. Este racismo que se pretende racional, individual, determinado, genotípico e fenotípico, transforma-se em racismo cultural. O objeto do racismo já não é o homem particular, mas uma certa forma de existir. No limite, fala-se de mensagem, de estilo cultural. Os “valores ocidentais” reúnem-se singularmente ao já célebre apelo à luta da “cruz contra o crescente”.

Sem dúvida, a equação morfológica não desapareceu completamente, mas os acontecimentos dos últimos trinta anos abalaram as convicções mais firmes, subverteram o tabuleiro de xadrez, reestruturaram um grande número de relações.

A lembrança do nazismo, a miséria comum de homens diferentes, a escravização comum de grupos sociais importantes, o surgimento de “colônias europeias”, quer dizer, a instituição de um regime colonial em plena Europa, a tomada de consciência dos trabalhadores dos países colonizadores e racistas, a evolução das técnicas, tudo isto alterou profundamente o aspecto do problema.

Temos de procurar, ao nível da cultura, as consequências deste racismo.

O racismo, vimo-lo, não é mais do que um elemento de um conjunto mais vasto: a opressão sistematizada de um povo. Como se comporta um povo que oprime? Aqui, encontram-se constantes.

Assiste-se à destruição dos valores culturais, das modalidades de existência. A linguagem, o vestuário, as técnicas são desvalorizados. Como dar conta desta constante? Os psicólogos que têm tendência para tudo explicar por movimentos da alma pretendem encontrar este comportamento ao nível dos contatos entre particulares: crítica de um chapéu original, de uma maneira de falar, de andar…

Semelhantes tentativas ignoram voluntariamente o caráter incomparável da situação colonial. Na realidade, as nações que empreendem uma guerra colonial não se preocupam com o confronto das culturas. A guerra é um negócio comercial gigantesco e toda a perspectiva deve ter isto em conta. A primeira necessidade é a sujeição, no sentido mais rigoroso, da população autóctone.

Para isso, é preciso destruir os seus sistemas de referência. A expropriação, o despojamento, a razia, o assassinato objetivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais ou, pelo menos, condicionam essa pilhagem. O panorama social é desestruturado, os valores ridicularizados, esmagados, esvaziados.

Desmoronadas, as linhas de força já não ordenam. Frente a elas, um novo conjunto, imposto, não proposto mas afirmado, com todo o seu peso de canhões e de sabres.

No entanto, a implantação do regime colonial não traz consigo a morte da cultura autóctone. Pelo contrário, a observação histórica diz-nos que o obetivo procurado é mais uma agonia continuada do que um desaparecimento total da cultura preexistente. Esta cultura, outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela canga da opressão. Presente e simultaneamente mumificada, depõe contra os seus membros. Com efeito, define-os sem apelo. A mumificação cultural leva a uma mumificação do pensamento individual. A apatia tão universalmente apontada dos povos coloniais não é mais do que a consequência lógica desta operação. A acusação de inércia que constantemente se faz ao “indígena” é o cúmulo da má-fé. Como se fosse possível que um homem evoluísse de modo diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir.

É assim que se assiste à implantação de organismos arcaicos, inertes, que funcionam sob a vigilância do opressor e decalcados caricaturalmente sobre instituições outrora fecundas…

Estes organismos traduzem aparentemente o respeito pela tradição, pelas especificidades culturais, pela personalidade do povo escravizado. Este pseudorespeito identifica-se, com efeito, com o desprezo mais consequente, com o sadismo mais elaborado. A característica de uma cultura é ser aberta, percorrida por linhas de força espontâneas, generosas, fecundas. A instalação de “homens seguros” encarregados de executar certos gestos é uma mistificção que não engana ninguém. É assim que as djeemas cabilas nomeadas pelas autoridades francesas são reconhecidas pelos autóctones. São dubladas por uma outra djeema eleita democraticamente. E naturalmente a segunda dita a maior parte das vezes a sua conduta à primeira.

A preocupação constantemente afirmada de “respeitar a cultura das populações autóctones” não significa, portanto, que se considerem os valores ceiculados pela cultura, encarnados pelos homens. Bem depressa se adivinha, antes, nesta tentativa, uma vontade de objetivar, de encaixar, de aprisionar, de enquistar. Frases como: “eu conheço-os”, “eles são assim”, traduzem esta objetivação levada ao máximo. Assim, conheço os gestos, os pensamentos, que definem estes homens.

O exotismo é uma das formas desta simplificação. Partindo daí, nenhuma confrontação cultural pode existir. Por um lado, há uma cultura à qual se reconhecem qualidades de dinamismo, de desenvolvimento, de profundidade. Uma cultura em movimento, em perpétua renovação. Frente a esta, encontram-se características, curiosidades, coisas, nunca uma estrutura.

Assim, numa primeira fase, o ocupante instala a sua dominação, afirma maciçamente a sua superioridade. O grupo social, subjugado militar e economicamente, é desumanizado segundo um método polidimensional.

Exploração, torturas, razias, racismo, liquidações coletivas, opressão racional, revezam-se a níveis diferentes para fazerem, literalmente, do autóctone um objeto nas mãos da nação ocupante.

Este homem objeto, sem meios de existir, sem razão de ser, é destruído no mais profundo da sua existência. O desejo de viver, de continuar, torna-se cada vez mais indeciso, cada vez mais fantasmático. É neste estágio que aparece o famoso complexo de culpabilidade. Wright dedica-lhe nos seus primeiros romances uma descrição muito pormenorizada.

Contudo, progressivamente, a evolução das técnicas de produção, a industrialização, aliás limitada, dos países subjugados, a existência cada vez mais necessária de colaboradores, impõem ao ocupante uma nova atitude. A complexidade dos meios de produção, a evolução das relações econômicas, que, quer se queira quer não, arrasta consigo a das ideologias, desequilibram o sistema. O racismo vulgar na sua forma biológica corresponde ao período de exploração brutal dos braços e das pernas do homem. A perfeição dos meios de produção provoca fatalmente a camuflagem das técnicas de exploração do homem, logo das formas do racismo.

Não é, pois, na sequência de uma evolução dos espíritos que o racismo perde a sua virulência. Nenhuma revolução interior explica esta obrigação de o racismo se matizar, de evoluir. Por toda a parte há homens que se libertam abalando a letargia a que a opressão e o racismo os tinham condenado.

Em pleno coração das “nações civilizadoras”, os trabalhadores descobrem finalmente que a exploração do homem, base de um sistema, toma diversos rostos. Neste estágio, o racismo já não ousa mostrar-se sem disfarces. Contesta-se. Num número cada vez maior de circunstâncias, o racista esconde-se. Aquele que pretendia “senti-los”, “adivinhá-los”, descobre-se visado, olhado, julgado. O projeto do racista é então um projeto perseguido pela má consciência. A salvação só pode vir-lhe de um empenhamento passional tal como se encontra em certas psicoses. E não é um dos menores méritos do professor Baruk o ter precisado a semiologia desses delírios passionais.

O racismo nunca é um elemento acrescentado descoberto ao sabor de uma investigação no seio dos dados culturais de um grupo. A constelação social, o conjunto cultural, são profundamente remodelados pela existência do racismo.

Diz-se corretamente que o racismo é uma chaga da humanidade. Mas é preciso que não nos contentemos com essa frase. É preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade. A importância do problema racista na literatura americana contemporânea é significativa. O negro no cinema, o negro e o folclore, o judeu e as histórias para crianças, o judeu no café, são temas inesgotáveis.

Para voltar à América, o racismo obceca e vicia a cultura americana. E esta gangrena dialética é exacerbada pela tomada de consciência e pela vontade de luta de milhões de negros e de judeus visados por esse racismo.

Esta fase passional, irracional, sem justificação, apresenta ao exame um aspecto aterrador. A circulação dos grupos, a libertação, em certas partes do Mundo, de homens anteriormente inferiorizados, tornam cada vez mais precário o equilíbrio. Bastante inesperadamente, o grupo racista denuncia o aparecimento de um racismo nos homens oprimidos. O “primitivismo intelectual” do período de exploração dá lugar ao “fanatismo medieval, ou mesmo pré-histórico”, do período de libertação.

A dada altura tinha sido possível acreditar no desaparecimento do racismo. Esta impressão euforizante, à margem do real era simplesmente a consequência da evolução das formas de exploração. Os psicólogos falam então de um preconceito tornado inconsciente. A verdade é que o rigor do sistema torna supérflua a afirmação quotidiana de uma superioridade. A necessidade de apelar em graus diferentes à adesão, à colaboração do autóctone, modifica as relações num sentido menos brutal, mais cambiado, mais “culto”. Aliás, não é raro ver surgir neste estágio uma ideologia “democrática e humana”. O empreendimento comercial de sujeição, de destruição cultural, cede progressivamente o passo a uma mistificação verbal.

O interesse desta evolução está em que o racismo é tomado como tema de meditação, algumas vezes até como técnica publicitária.

É assim que o blues, “lamento dos escravos negros”, é apresentado à admiração dos opressores. É um pouco de opressão estilizada que agrada ao explorador e ao racista. Sem opressão e sem racismo não haveria blues. O fim do racismo seria o toque de finados da grande música negra…

Como diria o demasiado célebre Toynbee, o blues é uma resposta do escravo ao desafio da opressão.

Ainda hoje, para muitos homens, mesmo de cor, a música de Armstrong só tem verdadeiro sentido nesta perspectiva.

O racismo avoluma e desfigura o rosto da cultura que o pratica. A literatura, as artes plásticas, as canções para costureirinhas, os provérbios, os hábitos, os patterns, quer se proponham fazer-lhe o processo ou banalizá-lo, restituem o racismo.

O mesmo é dizer que um grupo social, um país, uma civilização, não podem ser racistas inconscientemente.

Dizemo-lo mais uma vez: o racismo não é uma descoberta acidental. Não é um elemento escondido, dissimulado. Não se exigem esforços sobre-humanos para o pôr em evidência.

O racismo entra pelos olhos dentro precisamente porque se insere num conjunto caracterizado: o da exploração desavergonhada de um grupo de homens por outro que chegou a um estágio de desenvolvimento técnico superior. É por isso que, na maioria das vezes, a opressão militar e econômica precede, possibilita e legitima o racismo.

O hábito de considerar o racismo como uma disposição do espírito, como uma tara psicológica, deve ser abandonado.

Mas como se comportam o homem visado por esse racismo, o grupo social escravizado, explorado, dessubstancializado? Quais são os seus mecanismos de defesa?

Que atitudes descobrimos aqui?

Vimos numa primeira fase o ocupante legitimar a sua dominação com argumentos científicos, vimos a “raça inferior” negar-se como raça. Porque nenhuma outra solução lhe é permitida, o grupo social racializado tenta imitar o opressor e com isso desracializar-se. A “raça inferior” nega-se como raça diferente. Partilha com a “raça superior” as convicções, as doutrinas, e tudo o que lhe diz respeito.

Tendo o autóctone assistido à liquidação dos seus sistemas de referência, ao desabar dos seus esquemas culturais, já não lhe resta senão reconhecer com o ocupante que “Deus não está do seu lado”. O opressor, pelo caráter global e terrível da sua autoridade, chega a impor ao autóctone novas maneiras de ver e, de uma forma singular, um juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir.

Este acontecimento, normalmente designado por alienação, é naturalmente muito importante. Encontramo-lo nos textos oficiais sob o nome de assimilação.

Ora, esta alienação nunca é totalmente conseguida. Talvez porque o opressor limite quantitativa e qualitativamente a evolução, surgem fenômenos imprevistos, heteróclitos.

O grupo inferiorizado tinha admitido, com uma força de raciocínio implacável, que a sua infelicidade provinha diretamente das suas características raciais e culturais.

Culpabilidade e inferioridade são as consequências habituais desta dialética. O oprimido tenta então escapar-lhes, por um lado, proclamando a sua adesão total e incondicional aos novos modelos culturais e, por outro lado, proferindo uma condenação irreversível do seu estilo cultural próprio. [2]

Contudo, a necessidade que o opressor tem, num dado momento, de dissimular as formas de exploração não provoca o desaparecimento desta última. As relações econômicas mais elaboradas, menos grosseiras, exigem um revestimento quotidiano, mas, a este nível, a alienação coninua a ser terrível.

Tendo julgado, condenado, abandonado, as suas formas culturais, a sua linguagem, a sua alimentação, os seus procedimentos sexuais, a sua maneira de sentar-se, de repousar, de rir, de divertir-se, o oprimido, com a energia e a tenacidade do náufrago, arremessase sobre a cultura imposta.

Desenvolvendo os seus conhecimentos técnicos no contato com máquinas cada vez mais aperfeiçoadas, entrando no circuito dinâmico da produção industrial, encontrando homens de regiões afastadas no quadro da concentração dos capitais, logo dos lugares de trabalho, descobrindo a linha de montagem, a equipe, o “tempo” de produção, ou seja, o rendimento por hora, o oprimido verifica como um escândalo a manutenção do racismo e do desprezo a seu respeito.

É a este nível que se faz do racismo uma história de pessoas. “Existem alguns racistas incorrigíveis, mas confessem que no conjunto, a população gosta de…”

“Com o tempo, tudo isto desaparecerá.”

“Existe na ONU uma comissão encarregada de lutar contra o racismo.”

Filmes sobre o racismo, poemas sobre o racismo, mensagens sobre o racismo…

As condenações espetaculares e inúteis do racismo. A realidade é que um país colonial é um país racista. Se na Inglaterra, na Bélgica ou em França, apesar dos princípios democráticos afirmados respectivamente por estas nações, ainda há racistas, são esses racistas que, contra o conjunto do país, têm razão.

Não é possível subjugar homens sem logicamente os inferiorizar de um lado a outro. E o racismo não é mais do que a explicação emocional, afetiva, algumas vezes intelectual, desta inferiorização.

Numa cultura com racismo, o racista é, pois, normal. A adequação das relações econômicas e da ideologia é, nele, perfeita. Certamente que a ideia que fazemos do homem nunca está totalmente dependente das relações econômicas, isto é, não o esqueçamos, das relações que existem histórica e geograficamente entre os homens e os grupos. Membros, cada vez mais numerosos, que pertencem a sociedades racistas tomam posição. Põem a sua vida ao serviço de um mundo em que o racismo seria impossível. Mas este recuo, esta abstração, este compromisso solene, não estão ao alcance de todos. Não se pode exigir impunemente que um homem seja contra os “preconceitos do seu grupo”.

Ora, é preciso voltar a dizê-lo, todo o grupo colonialista é racista.

Simultaneamente “aculturado” e desculturado, o oprimido continua a esbarrar no racismo. Acha que esta sequela é ilógica. Que o que ele superou é inexplicável, sem motivo, inexato. Os seus conhecimentos, a apropriação de técnicas precisas e complicadas, por vezes a sua superioridade intelectual frente a um grande número de racistas, levam-no a qualificar o mundo racista de passional. Apercebe-se de que a atmosfera racista impregna todos os elementos da vida social. O sentimento de uma injustiça tremenda torna-se, então, muito vivo. Esquecendo o racismo-consequência, atira-se com fúria sobre o racismo-causa. Empreendem-se campanhas de desintoxicação. Faz-se apelo ao sentido do humano, ao amor, ao respeito dos valores supremos…

De fato, o racismo obedece a uma lógica sem falhas. Um país que vive, que tira a sua substância, da exploração de povos diferentes inferioriza estes povos. O racismo aplicado a estes povos é normal.

O racismo não é, pois, uma constante do espírito humano.

É, vimo-lo, uma disposição inscrita num sistema determinado. E o racismo judeu não é diferente do racismo negro. Uma sociedade é racista ou não é. Não existem graus de racismo. Não se deve dizer que tal país é racista, mas que não há nele linchamentos ou campos de extermínio. A verdade é que tudo isso, e muito mais, existe como horizonte. Estas virtualidades, estas latências, circulam dinâmicas, inseridas na vida das relações psico-afetivas, econômicas…

Descobrindo a inutilidade da sua alienação, a profundidade do seu despojamento, o inferiorizado, depois desta fase de desculturação, de estrangeirização, volta a encontrar as suas posições originais.

O inferiorizado retoma apaixonadamente essa cultura abandonada, rejeitada, desprezada. Há nitidamente uma sobrevalorização que se assemelha psicologicamente ao desejo de se fazer perdoar.

Mas, por detrás desta análise simplificadora, há bem a intuição por parte do inferiorizado de uma verdade espontânea que irrompe. Esta história psicológica deságua na História e na Verdade.

Porque o inferiorizado reencontra um estilo outrora desvalorizado, assiste-se a uma cultura da cultura. Semelhante caricatura da existência cultural significaria, se fosse necessário mostrá-lo, que a cultura é vivida, mas não pode ser  fragmentada. Não se põe entre a lâmina e a lamela. [Não se pode dissecá-la e examiná-la ao microscópio]

Contudo, o oprimido extasia-se a cada redescoberta. O encantamento é permanente. Outrora emigrado da sua cultura, o autóctone explora-a hoje com arrebatamento. Trata-se, então de contínuos matrimônios. O antigo inferiorizado está em estado de graça.

Ora, não se sofre impunemente uma dominação. A cultura do povo subjugado está esclerosada, agonizante. Não circula nele qualquer vida. Mais precisamente, a única vida nela existente está nela dissimulada. A população que normalmente assume aqui e ali alguns pedaços de vida, que mantém significações dinâmicas para as instituições, é uma população anônima. Em regime colonial, são os tradicionalistas.

Pela ambiguidade súbita do seu comportamento, o antigo emigrado introduz o escândalo. Ao anonimato do tradicionalista, opõe um exibicionismo veemente e agressivo.

Estado de graça e agressividade são duas constantes deste estágio, sendo a agressividade o mecanismo passional que permite escapar à mordedura do paradoxo.

Porque o antigo emigrado possui técnicas precisas, porque o seu nível de ação se situa no quadro de relações já complexas, estas redescobertas revestem-se de um aspecto irracional. Existe um fosso, um defasamento, entre o desenvolvimento intelectual, a apropriação técnica, as modalidades de pensamento e de lógica altamente diferenciadas e uma base emocional “simples, pura”, etc.

Reencontrando a tradição, vivendo-a como mecanismo de defesa, como símbolo de pureza, como salvação, o desculturado dá a impressão de que a mediação se vinga substancializando-se. Este refluxo para posições arcaicas sem relação com o desenvolvimento técnico é paradoxal. As instituições assim valorizadas deixam de corresponder aos métodos elaborados de ação já adquiridos.

A cultura encapsulada, vegetativa, após a dominação estrangeira é revalorizada. Não é repensada, retomada, dinamizada de dentro. É clamada. E esta revalorização súbita, não estruturada, verbal, recobre atitudes paradoxais.

É neste momento que se faz menção do caráter irrecuperável dos inferiorizados. Os médicos árabes dormem no chão, cospem em qualquer lado, etc.

Os intelectuais negros consultam o bruxo antes de tomar uma decisão, etc.

Os intelectuais “colaboradores” procuram justificar a sua nova atitude. Os costumes, tradições, crenças, outrora negados e silenciados, são violentamente valorizados e afirmados.

A tradição já não é ironizada pelo grupo. O grupo já não foge a si mesmo. Reencontra-se o sentido do passado, o culto dos antepassados…

O passado, doravante constelação de valores, identifica-se com a Verdade.

Esta redescoberta, esta valorização absoluta de modalidade quase irreal, objetivamente indefensável, reveste uma importância subjetiva incomparável. Ao sair destes matrimônios apaixonados, o autóctone terá decidido, com “conhecimento de causa”, lutar contra todas as formas de exploração e de alienação do homem. Em contrapartida, o ocupante multiplica nesta altura os apelos à assimilação, depois à integração, à comunidade.

O corpo a corpo do indígena com a sua cultura é uma operação demasiado solene, demasiado abrupta, para tolerar qualquer falha. Nenhum neologismo pode mascarar a nova evidência: o mergulho no abismo do passado é condição e fonte de liberdade.

O fim lógico desta vontade de luta é a libertação total do território nacional. Para realizar esta libertação, o inferiorizado põe em jogo todos os seus recursos, todas as suas aquisições, as antigas e as novas, as suas e as do ocupante.

A luta é subitamente total, absoluta. Mas então já não se vê aparecer o racismo.

No momento de impor a sua dominação, para justificar a submissão, o opressor invocara argumentações científicas. Aqui, nada de semelhante.

Um povo que empreende uma luta de libertação raramente legitima o racismo. Mesmo no decurso de períodos agudos de luta armada insurrecional, nunca se assiste a uma tomada maciça de justificações biológicas.

A luta do inferiorizado situa-se a um nível nitidamente mais humano. As perspectivas são radicalmente novas. É a oposição doravante clássica entre as lutas de conquista e as de libertação.

No decurso da luta, a nação dominadora tenta reeditar argumentos racistas, mas a elaboração do racismo revela-se cada vez mais ineficaz. Fala-se de fanatismo, de atitudes primitivas perante a morte, mas, uma vez mais, o mecanismo doravante deitado por terra já não responde. Os imóveis de antes, os covardes constitucionais, os medrosos, os inferiorizados de sempre, crispam-se e emergem eriçados.

O ocupante já não compreende.

O fim do racismo começa com uma súbita incompreensão.

A cultura espasmada e rígida do ocupante, liberta, oferece-se finalmente à cultura do povo tornado realmente irmão. As duas culturas podem enfrentar-se, enriquecer-se.

Em conclusão, a universalidade reside nesta decisão de assumir o relativismo recíproco de culturas diferentes, uma vez excluído irreversivelmente o estatuto colonial.

Notas

[1] Texto da intervenção de Frantz Fanon no Primeiro Congresso dos Escritores e Artistas Negros em Paris, em setembro de 1956. Publicado no número especial de Présence Africaine, de junho-novembro de 1956.

[2] Por vezes, aparece neste estágio um fenômeno pouco estudado. Intelectuais, investigadores, do grupo dominante estudam “cientificamente” a sociedade dominada, a sua estética, o seu universo ético.

Os raros intelectuais colonizados veem, nas Universidades, o seu sistema cultural ser-lhes revelado. Acontece até que os sábios dos países colonizadores se entusiasmam por este ou aquele traço específico. Surgem os conceitos de pureza, ingenuidade, inocência. A vigilância do intelectual indígena tem de redobrar nesta altura.

*Fanon, médico psiquiatra de formação, era ávido leitor de Freud e Lacan, e profundo admirador do libertário psiquiatra catalão Tosquelles, com quem conviveu durante 15 meses no hospital psiquiátrico de Saint-Alban.

Fonte: http://matutacoes.files.wordpress.com/2013/01/105044456-fanon-frantz-racismo-e-cultura.pdf

Fonte: Matutações

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