Gustavo Melo Cerqueira
Há pouco mais de um ano estava eu numa conferência internacional na Duke University, na cidade de Durham, Carolina do Norte. A conferência reunia pesquisadores, artistas e ativistas de diversos países do continente Americano. Variados temas seriam abordados na conferência, e na mesa de abertura estava Walter Mignolo, que viria a ser co-convener do grupo de trabalho sobre decolonialidade do qual eu participaria. Aproveitando o momento, e na onda de muitas discussões sobre afropessimismo nas quais eu estava envolvido na Universidade do Texas em Austin, perguntei aos integrantes da mesa de abertura: já que estamos falando sobre decolonialidade, não seria também o caso de começarmos a nos questionar, e mesmo a investir na formação de uma corrente de pensamento sobre de-humanidade? Digo, não está na hora de de-humanizarmos um pouco a discussão, em vez de sempre recorrermos a uma tal essência humana que pretensamente nos une a todxs?
As repostas a essas questões foram as mais diversas. Houve quem me interpelasse inicialmente para ter certeza de que eu não estava falando do emprego de meios de cruéis para quaisquer fins. Outras pessoas achavam que, sim, o direito dos animais deveria ser abordado com maior contundência em discussões sobre política e performance (do que eu não discordo, mas de-humanizar não significa tornar humanos os animais). Outras pessoas, ainda, me interpelaram depois para debater a noção de ciborgue, discussão que pode vir a ser extremamente frutífera dentro do que possa vir a ser o conceito de de-humanização.
Uma intervenção, porém, me chamou ainda mais a atenção em relação a todas as outras, justamente por ter trazido a questão racial e escravocrata para o debate. A essa altura já estávamos todxs no coffee break, e eu aproveitava o verde gramado do campus da universidade para me sentar e elaborar um pouco mais essa noção de de-humanidade, ideia sobre a qual nunca mais tive tempo de pensar até o presente momento. Pois bem, eis que essa mulher, branca, jovem, estadunidense, veio até mim e, com ares de quem está se aproximando de algo um tanto perigoso – fosse esse perigo o tema que ela queria abordar ou a minha mera presença – começou a falar da sua ancestralidade: ela teve um tataravô; esse tataravô tinha uma fazenda; esse tataravô tinha uma fazenda que cultivava plantas e criava animais (ok, já entendi que era uma plantation); esse tataravô tinha uma fazenda que cultivava plantas e animais e tinha gente que trabalhava lá (por óbvio, eu diria); esse tataravô blá, blá, blá e tinha gente escrava que trabalhava lá. Silêncio. Ela desviou os olhos. Não sei se os olhos dela lacrimejaram, ou se foi alguma canastrice performática que ela desenvolveu com o passar dos anos. Com os olhos quase na direção dos meus (existe um espaço entre a orelha e o ombro para o qual algumas pessoas olham como se estivessem a olhar nos olhos) ela me disse que trabalhava com crianças numa situação de adversidade da qual não me lembro, mas era algo entre o que chamaríamos no Brasil de menores carentes ou em situação de risco.
Segundo ela, muitas dessas crianças eram “de cor”. Vale esclarecer (sic) que a expressão crianças “de cor” geralmente significa que as crianças pertencem a qualquer grupo étnico e racial não definido como branco, muito embora a definição de quem é ou quem não é branco nos Estados Unidos tenha mudado várias vezes ao longo do tempo. Mexicanxs, por exemplo, já foram consideradxs brancxs. Italianxs, por exemplo, nem sempre foram consideradxs brancxs. Mexicanxs, hoje, não são brancxs. Italianxs são.
Pois bem, ela prosseguiu dizendo que muitas das crianças “de cor” com as quais ela trabalhava eram negras (a palavra “negras” veio acompanhada de um encolher de ombros e um meneio de cabeça que desviou o seu olhar do intervalo entre a orelha e o ombro e se dirigiu para o meu plexo. Ela estendeu uma mão espalmada para cima, com dedos apontados quase que sem-
intenção para o mesmo ponto onde o olhar dela se fixava, indicando que algo em mim me identificava com as crianças negras com as quais ela trabalhava). Após toda essa performance de culpa pela fato de seu avô ter sido senhor de escravos, somado à performance do “eu trabalho para remediar e reparar isso”, com direito a sugerir uma identidade entre mim e as crianças negras, ela finalmente disse que entendia o que eu falava sobre desumanizar (em inglês fica realmente difícil distinguir entre desumanizar no sentido de tornar menos humano, e de-humanizar, a ideia que eu estava sugerindo, de desmantelamento da ideia de humanidade). Segundo ela, impingir sofrimento às outras pessoas, como fez o seu tataravô, também desumaniza. Ou seja, sem querer reduzir os horrores da escravidão para negrxs, seu tataravô certamente foi também duramente desumanizado pelo processo escravocrata.
Poderia aqui dar uma pausa dramática, mas ela não aconteceu. Prontamente eu disse a ela que seu tataravô não foi desumanizado pela escravidão. Ele se fez humano graças à escravidão. Assim como todo o chamado hemisfério ocidental (pelo menos) só é humano graças à escravidão e ao colonialismo. Um senhor de escravos e escravas, uma senhora de escravos e escravas se fazem humanos e humanas por serem escravocratas, e cada vez que a gente se defende, se afirma, ou se pretende humano ou humana, é em celebração às graças do processo escravocrata e ao colonialismo. Disse, por fim, que de-humanizar seria desmantelar esse processo, em vez de investir em manter a mesma direção, ainda que em sentido reverso.
Ela fez uma cara de asco, levantou-se, e disse que conversaríamos melhor depois. Evitou se aproximar de mim durante todo o resto da conferência. Foi levemente rude num outro momento. E pelo fato de eu ter ido à conferência sem cartão de visitas – eu quis dar a ela o meu contato anotado num pedaço de papel para que continuássemos conversando – ela foi jocosa e fez piadinha comigo em frente a uma colega dela que era também jovem, mulher, branca e estadunidense, mas de cujo tataravô eu não tenho maiores informações. Enfim, por muito pouco, muito pouco mesmo, acho que a jovem “desumanizou”.
Das várias nuances contidas nessa história, me impressionou a expressão de assombro e asco no rosto da jovem estudante branca estadunidense. Depois me dei conta de que aquela expressão facial era parte de uma reorganização corporal causada por uma diferente abordagem acerca do sofrimento negro. Afirmar que a humanidade de seu tataravô – e, por conseguinte, a sua própria – fosse composta, fundamentalmente, de sofrimento negro, beirou a esfera do impensável. Porque não se tratava de falar de privilégios, de assumir os privilégios diários de classe legados pela história da escravidão e do racismo. Não se tratava, tampouco, de abrir mão desses privilégios, pois isso seria como repetir o gesto de ter a mão espalmada para cima e os dedos casualmente direcionados para uma criança “de cor”. A humanidade dessa branca jovem estudante estadunidense estava atada, há gerações, ao uso do sofrimento negro como extensão do próprio corpo. De-humanizar implicaria em ser mutilada dos múltiplos usos desse sofrimento.
Disputar o sofrimento – seja negro ou não-negro – implica em disputar humanidade, mas também pode significar desafiá-la. Uma acadêmica estadunidense branca de nome Robin Bernstein, ao estudar as várias qualidades atribuídas à noção de childhood, ou infância, no século XIX nos Estados Unidos – provavelmente à época em que o tataravô da jovem estadunidense estudante branca explorava sua plantation – investiga de que modos a dor, enquanto critério de aferição de humanidade, também define parâmetros para o que se considera infância. Através de uma abordagem fenomenológica e considerando várias fontes – do sucesso da versão ilustrada de A Cabana do Pai Tomás, passando pelo script de violabilidade/sofrimento de bonecas, sobretudo as negras, e indo até o famoso experimento das bonecas para aferir identificação racial – a autora demonstra que as crianças brancas são entendidas como suscetíveis à dor (aquelas que sofrem), enquanto as crianças negras são vistas e representadas como imunes à dor (aquelas que não sofrem).
Em similar diapasão, Saidiya Hartamn, uma autora negra estadunidense – também estudando o tempo em que provavelmente viveu e se humanizou o tataravô da jovem estadunidense estudante branca – demonstra que, para além dos meios óbvios e espetaculares – como chibatadas e mutilações– outros meios mais sutis, mas não menos insidiosos, fazem parte da gama de usos do sofrimento negro. Mais, Hartman demonstra que o sofrimento negro não é legível, exceto por meio de identificação e empatia, dois mecanismos que na relação (sic) brancx / negrx, denotam o caráter de fungibilidade do corpo negro escravizado. Ou seja, de acordo com Hartman, para além da fungibilidade do corpo negro enquanto mercadoria, desenvolveu-se também a fungibilidade do corpo negro no que tange ao seu sofrimento, dentre outros aspectos. Entre os exemplos que Hartman cita, está o de abolicionistas brancos que, ao relatarem em cartas o sofrimento negro, precisavam convidar o leitor a imaginar o autor da carta e sua família (brancos), como vítimas do sofrimento (negro) descrito. Ao fazer isso, porém, e apesar da boa intenção, o abolicionista apaga o corpo negro escravizado não só enquanto vítima, mas principalmente enquanto, eu diria, sujeito do sofrimento.
Assim, o sofrimento se torna legível quando imaginado branco. Se há uma ansiedade em relação ao corpo negro, como argumenta Frantz Fanon, impingir-lhe e roubar-lhe o sofrimento são medidas fundamentais para aplacar essa angústia e, posteriormente, fazer uso desse sofrimento para afirmar a humanidade (não-negra). E esse mecanismo tem implicações políticas com as quais lidamos diariamente. Conforme argumentado pelo autor estadunidense negro Frank B. Wilderson, pode-se dizer que existe uma política de sofrimento associada ao corpo negro que define, por meio dos limites entre a violência estrutural/gratuita e a violência ocasional, quem é humano/cidadão e quem não é humano/cidadão.
O sofrimento negro é uma extensão do corpo não-negro, uma amplificação desse corpo. O sofrimento negro é ilegível quando portado por um corpo negro, muito embora seja sobre esse corpo que o sofrimento deva acontecer para que os corpos não-negros eventualmente nele se projetem e dele usufruam sem causar risco real aos seus próprios corpos. Portanto, o que eu estou argumentando, e faço isso na esteira dxs pensadores já aqui citados como Fanon, Wilderson e Hartman, dentre tantxs outrxs, é que a humanidade, não apenas como discurso mas também como fenômeno existencial, se forma ou adquire os contornos com os quais a conhecemos hoje, não só através da negação sistemática e estrutural do valor de humanidade ao corpo negro, mas também pela posse e manipulação desse sofrimento.
Assim, e isso talvez precise ficar mais evidente, não há sentido em se pensar em humanizar o corpo negro como se isso estivesse ao alcance de qualquer corpo. Não está! Que bom! Há que se pensar em de-humanizar os corpos não-negros como modo de revelar as estruturas antinegras sobre as quais esses corpos não-negros ouvem, cheiram, pensam, se comunicam e existem. O projeto humano precisa ser radicalmente desmantelado como forma de alterar os modos como hoje nos enxergamos e nos relacionamos. Clamar por subjetividade humana – seja ela existencial, emocional ou política – bem como atribuir humanidade a quem quer que seja, costumam configurar, eventualmente, em práticas de subjugação e de opressão antinegras.
Desmantelar o humano! Insisto com a palavra desmantelar, em vez de substituir, descontruir ou reformular porque acho importante enfatizar os corpos negros em situação concreta, corpórea, de de-humanizar os corpos não-negros, consequentemente abrindo mão de estratégias humanas, humanizantes ou humanizadoras. Penso nas possibilidades das ações dos corpos negros não apenas para alterar o esquema facial de um outro corpo – a cara de asco da branca jovem branca estudante branca estadunidense branca – mas que possa desmantelá-lo visceral, mental, emocional, psicológica e politicamente. E o mais desafiador: que nossos corpos negros possam fazer isso sem medo de nos sentirmos, também, inteiramente desmantelados no curso dessas práticas.
Reclamar o sofrimento não traz humanidade ao corpo negro, mas expropria do não-negro seu principal componente humano. Quando o negro reclama o seu sofrimento, e caminha com ele, expondo seu corpo e permitindo que sua aproximação aos corpos não-negros ameace de-humanizar a sociedade, amputando a extensão dos corpos que a compõem, estamos beirando o impensável – mas impensáveis também foram os corpos negros da Revolução Haitiana, como bem nos lembra Susan Buck-Mors.
Corpos negros são impensáveis.
Corpos negros juntos podem de-humanizar.
Corpos negros reclamando seu sofrimento sem intenção de seduzir, sem intenção de tornar seu sofrimento legível, sem intenção de sensibilizar a sociedade, ameaçam.
Corpos negros que não deixam que lhes roubem suas dores, ameaçam a existência do mundo tal qual o conhecemos.
Corpos negros juntos, carregando sua dor, são a representação mesma do impensável.
Marchemos.