O juiz, o direito é o não direito.

Artigo de Sérgio Martins

O contrato social hipoteticamente está na base de criação do Estado de Direito, sendo o fundamento das sociedades com regimes democráticos, supõe que os indivíduos abrem mão de sua autodefesa e de suas supostas liberdades “naturais”, dando lugar há pacto político, onde o Estado é órgão condensador dos poderes republicanos, exercidos através dos poderes executivo, legislativo e do judiciário.

Neste último, o juiz desempenhar um papel central, como um funcionário público altamente qualificado em conhecimentos sobre o direito, tendo a função de aplicar as normas jurídicas como parâmetros para resolução de conflitos que envolvem pessoas físicas e jurídicas.

Um dos princípios que norteiam a atividade jurisdicional é o chamado “livre convencimento do magistrado”,  como um instrumental lógico-formal, que permite ao juiz  ajustar sua decisão plasmada em uma sentença,  visando concretizar um direito mais justo e racionalmente possível. No entanto, este juízo decisório precisa estar legitimado nos princípios e normas constitucionais, nas normas gerais do ordenamento jurídico, sob pena de ser uma decisão que não cumpre sua função de concretizar o direito.

É obvio que todo julgador possui uma “norma oculta”, tal como uma régua, que serve com parâmetro ou guia de resolução e análise dos argumentos e fatos trazidos em um processo judicial.  Acredito que uma norma composta de conteúdo transdiciplinares, princípios morais e escolhas culturais, cujo limite que se estabelece ao julgador é a congruência entre a norma oculta e as normas jurídicas, e por fim, a realização do melhor direito. Digo assim, porque um magistrado de 1ª instância pode produzir uma sentença de não direito ou de garantia precária de direito, tornando-se esta sentença objeto de revisão pelos tribunais superiores ou não, sabemos dos absurdos que correm nos tribunais pelo país, principalmente quando os julgados são negros, mulheres e pobres. Já afirmava um saudoso membro do Supremo Tribunal de Federal, que os negros geralmente se encontram nos bancos dos tribunais como réus.

Permito-me esta premissa introdutória, para tecer um comentário sobre a decisão do juiz federal da 17ª Vara Federal, (processo nº 0004747-33.2014.4.02.5101), que denegou a retirada dos vídeos da igreja universal do Google Brasil, por via de tutela antecipada, sob argumentação de que tais conteúdos não feriam a liberdade de opinião, reunião e religião.

A ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal teve como base uma representação da Associação Nacional de Mídia Afro, onde postulava a retirada de diversos vídeos divulgados no youtube que disseminavam a intolerância e a discriminação contra as religiões de matrizes africanas. Foram deduzidos os seguintes pedidos pelo MPF: a retirada dos vídeos e a proibição de reintroduzi-los e a condenação em reparação de danos morais coletivos.

O argumento central da ação judicial, diga-se um belo libelo de defesa ao respeito ao culto religioso, funda-se na afirmação de que o Brasil é um Estado laico, assegurando a todos liberdade de crença religiosa, o livre exercício do culto e a proteção dos seus locais e suas liturgias, conforme fixado na Constituição Federal.

Observa-se que antes da distribuição do processo judicial a empresa Google foi convocada a retirar os vídeos, e se recusou, apresentando as seguintes informações, “tais vídeos nada mais são do que a manifestação da liberdade religiosa do povo brasileiro e que os vídeos não violavam a política da empresa”.

Assim diz o juiz em três páginas e algumas linhas:

….. ambas as manifestações de religiosidade não contém os traços necessários de uma religião, a saber, um texto base (corão, bíblia etc.) ausência de estrutura e ausência de um Deus a ser venerado.

…. As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença – são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.

…. Quanto ao aspecto do direito fundamental de reunião, os vídeos e bem como os cultos afro-brasileiros, não compõem uma vedação à continuidade da existência de reunião de macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda.

…. Não há, do mesmo modo, perigo de irreversibilidade, posto que as práticas das manifestações afro-brasileiras são centenárias, e não há prova inequívoca que os vídeos possam colocar em risco a prática cultural profundamente enraizada na cultura coletiva brasileira.

É certo que poderíamos ter decisões diferentes ou iguais com outras argumentações. Deixo de lado, a máxima jurídica de que sentença judicial “não se discute, recorre-se” e afirmo que o magistrado foi parcial e não observou seu papel de concretizador do direito, produzindo um não direito.

Ao examinar a peça inicial há uma descrição cuidadosa de uma forma de achincalhamento dos sistemas religiosos de matrizes africanas, suas entidades querem sejam de umbanda ou candomblé através de um discurso de satanização ou demonização, por meio de depoimento de “pastores” e adeptos.  Observa-se ainda, que há uma finalidade clara de desacreditar um sistema religioso em detrimento do outro, o que já é em si uma afronta ao respeito ao culto alheio, onde um indivíduo busca seu encontro com a felicidade ou seu bem-estar neste planeta, sem ferir o bem comum, a moral e os bons costumes.

Quando o juiz nega à condição de culto religioso as religiões africanas, através de argumentos medíocre e etnocêntrico, ele retira-os da proteção do Estado. Ora, é tão ideológica a posição do magistrado, quando conclui sua decisão afirmando que as religiões de matrizes africanas equiparam-se às práticas culturais, tais como escola de samba, folias de reis etc…

O papel do magistrado no caso em proposto não é examinar a estrutura teológica das religiões de matrizes africanas, umas vez, que não dispõe de conhecimento para tal e nem de tempo em um processo judicial. Além disto, em se tratando dos cultos afros, o juiz para partilhar uma compreensão iluminada teria que ser iniciado. Sua tarefa era analisar o conflito concreto que lhe foi trazido em ação judicial, sob a égide das normas de proteção a liberdade de culto e as normas de proteção a livre manifestação de opinião. Ora, se um culto religioso, de forma sistemática, por meio de difusão eletrônica aberta, ataca outro culto e seus seguidores, cabe ao Estado juiz sanar este conflito.

Foi necessário produzir um não direito para justificar a desnecessidade de uma decisão emergencial de retirada dos vídeos do Google. Como regra de bom senso, poderia o magistrado, citar as partes para uma audiência de conciliação e após decidir sobre a matéria, dado o grau de complexidade. A proteção ao culto implica uma regra de respeito ao culto alheio e a proteção ao exercício de liberdade do culto em caso de ameaça, cabendo á imposição de medidas judiciais de restrições aos ataques, quer sejam físicos ou morais.

Por todo país assistimos agressões individuais, invasões de espaços sagradas, intimidações ao exercício do culto em um crescente movimento orquestrado pelos novos cultos pentencontais, através de uma pregação fundamentalista que ameaça liberdade de exercício ao culto, e muito mais abre espaço para uma “guerra santa”, onde milhares de pessoas de ambos os lados seriam sacrificados em nome da ignorância e da busca pelo aumento das fileiras de contribuintes destes novos cultos de intolerância cristã. Um magistrado não pode descolar-se da realidade, sob pena de não cumprir seu primado de produzir um bom direito em uma sociedade de posições e posturas conflitantes e contraditórias.

Por fim, nossa Constituição Federal fixa como princípios norteadores do Estado de Direito à proteção a dignidade humana, uma regra preponderante tanto para liberdade de culto como para liberdade de expressão. Nosso sistema jurídico, neste diapasão diferencia dos sistemas de direitos alienígenas. Se o Estado não garantir o livre exercício ao culto de forma digna e respeitosa,  coloca em cheque a própria existência do pacto político estruturante da Estado brasileiro.

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