Racialismo e Racismo

Ariana Mara da Silva[1]

É plausível, e talvez não correto, dizer que a grande dificuldade nas discussões sobre racismo e racialismo está na origem das palavras. Tanto um quanto o outro dependem da existência de raças, nesse caso raças humanas, para fazerem sentido. Esse texto não tem a intenção de ir a favor ou contra os que defendem o racialismo, para o bem ou para o mal, mas apresentar diferentes pontos de vista sobre a questão e as possíveis consequências da construção de uma teoria que pretende discutir raças sem ser racista. E para melhor ilustrar essa discussão partiremos da visão de um autor que se mostra claramente contra o racismo, Tzetzan Todorov. O autor afirma que

A palavra “racismo”, em sua acepção corrente, designa dois domínios muito diferentes da realidade: trata-se, de um lado, de um comportamento, feito, o mais das vezes, de ódio e desprezo com respeito a pessoas com características físicas bem definidas e diferentes das nossas; e, por outro lado, de uma ideologia, de uma doutrina referente às raças humanas. As duas não precisam estar necessariamente presentes ao mesmo tempo. O racista comum não é um teórico, não é capaz de justificar seu comportamento com argumentos “científicos”; e, reciprocamente, o ideólogo das raças não é necessariamente um “racista” no sentido corrente do termo, suas visões teóricas podem não ter qualquer influência sobre seus atos; ou sua teoria pode não implicar na existência de raças intrinsecamente más. (TODOROV, 1993, p.107)

Dessa forma, quem estuda as raças não necessariamente é um racista de comportamento, ou seja, é um racista no campo teórico e ideológico. Isso se explicaria pelo fato do comportamento do racista estar baseado no ódio pelas diferentes raças e não na pesquisa científica. Esse discurso sobre racialismo parece estar na moda a partir do século XIX, quando surgem as teorias científicas sobre as raças. Mas isso pode ser considerado um engano se pensarmos que a questão racial aparece desde a antiguidade como forma de fundamentação e justificação de mitos e religiões, e que essa situação sempre determinou ideais políticos e sociais dos povos e sociedades.

[1] Acadêmica do curso de História na Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA) – [email protected].

A questão a ser levantada é a seguinte: mas existem raças humanas? De acordo com o texto A vitória depende da raça do atleta?[2] a resposta é não. O autor do texto afirma que raças são grupos menores, uma subdivisão, dentro de uma espécie animal e na comparação genética entre seres humanos existem mais similaridades que diferenças. Logo ser negro, branco ou asiático não seriam classificações raciais. Então o que explicaria as diferenças na cor da pele, na compleição física ou na linguagem? A explicação está no fato de que as variações morfológicas dos indivíduos humanos estão relacionadas à adaptação dos organismos no ambiente que vivem.

O desenvolvimento do corpo humano apresenta plasticidade suficiente para que, na presença de diferenças sutis nas condições de crescimento e condições de vida, possa ser modificado de modo significativo. Diferentes regiões geográficas, diferentes padrões alimentares e diferente padrão de exposição aos raios ultravioleta são fenômenos que podem modificar a compleição física humana. De fato, os seres humanos apresentam uma incrível diversidade de tamanhos, cores e formas e, quando comparados a outros mamíferos, esta variação morfológica é significativamente maior entre humanos. Contudo, a variação genética entre as populações humanas é menor que aquela observada entre outras espécies. (BIOLOGIADASAUDE.ORG)

Assim, o conceito de raça que conhecemos é uma construção social, baseada na percepção de características demográficas, culturais e sociopolíticas dos diferentes grupos humanos.

É importante ressaltar que o debate sobre o racialismo e o racismo é muito forte no século XIX, principalmente por causa da formação dos Estados Nação e das colônias que estão se tornando independentes na América Latina. Os Estados europeus numa tentativa de justificar os anos da colonização e, às vezes, até justificando o porquê da América Latina não ter capacidade de ser independente, utilizam o cientificismo em alta para explicar as diferenças entre as raças e afirmar a superioridade europeia. O mesmo discurso volta a ganhar força em um momento específico: após a Segunda Guerra Mundial, quando se apresenta para o mundo a noção real do que foi o nazismo para os judeus. A ONU, através da UNESCO, mobiliza biólogos, antropólogos e outros cientistas a fim de provar que as raças não existem. Na Primeira Declaração sobre Raça da UNESCO a afirmação “raça é menos um fato biológico do que um mito social e, como mito, causou severas perdas de vidas humanas e muito sofrimento em anos recentes[3]” (UNESCO apud MAIO e SANTOS, 2010, pp. 147-148) fica evidente os rumos que a discussão sobre raças tomará.

[2]Ver http://www.biologiadasaude.org/

[3]Grifo próprio

Interessante é perceber que os conjuntos de países que conformam a ONU nesse período não se ativeram às perdas de vidas e aos sofrimentos causados pela neocolonização na África no século XIX e XX, ou mesmo as consequências da colonização na América Latina nos séculos anteriores. Ou seja, a discussão sobre raça só ganha importância no momento em que os Europeus se veem afetados pelo racismo justificado no racialismo. Vale lembrar que o racialismo é um conceito que surge nas sociedades europeias, com o objetivo de desclassificar os movimentos antirracistas como uma estratégia eficaz ao combate ao racismo.

No Brasil, especificamente, o discurso racialista foi apropriado pelo Movimento Negro como questão de construção identitária. Ou seja, são racistas e antirracistas partindo de um mesmo campo simbólico para se enfrentarem, mas a diferença agora é que os negros (nesse caso) que sempre foram discriminados com a base nas teorias racialistas se apropriaram dessas teorias para mostrar que são diferentes mesmo e que por causa dessa diferença sempre foram colocados em condições econômicas e sociais precárias e então agora querem ser ressarcidos por causa disso. Dessa forma surgem os universalistas tentando mostrar que todos são iguais e que por isso não há motivo para “privilégios” como as cotas raciais nas universidades, por exemplo. Enquanto raça estava sendo utilizado como estereótipo para opressão não havia grandes discussões sobre o tema, a partir da apropriação do conceito como forma de auto definição e resistência às vozes contrárias aparecem para desmerecer uma luta que levou séculos para chegar ao patamar que se encontra hoje.

Partindo do mito da democracia racial, diversos autores, dentre eles Demétrio Magnoli e Célia Maria de Azevedo, se apropriam do discurso que o Movimento Negro brasileiro foi fortemente influenciado pelo Movimento Negro estadunidense que impuseram uma falsa universalização do racismo nos países emergentes e que o intercâmbio entre os intelectuais negros dos dois países seria uma estratégia de imposição do sistema bipolar de relações raciais existentes somente nos Estados Unidos. Esse tipo de afirmação desqualifica não somente os intelectuais brasileiros, mas os intelectuais e acadêmicos negros que teorizam sobre o tema.

Não há como admitir a existência do racismo negando a existência das raças no momento em que diversos povos, populações e etnias se apropriam do conceito para se auto afirmarem num mundo construído em cima das desigualdades baseadas nas diferenças. Dessa forma, os debates sobre racismo e racialismo estão apenas no começo, mas a transformação para um mundo sem raças e diferenças causadas por esse conceito social só ocorrerá quando a discussão estiver esgotada e nenhum ser humano sendo destratado pela cor da sua pele, pela sua cultura ou etnia.

 


Referências

ISRAEL, J.L. Razas, clases sociales y vida política em el México colonial 1610-1670. pp. 35-85. México: Fondo de Cultura Economica, [2010].

MAIO, Marcos Chor (ORG.); SANTOS, Ricardo Ventura. Cientificismo e Antirracismo no Pós Segunda Guerra Mundial: uma análise das primeiras Declarações sobre Raça da UNESCO. In: Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. 316p.

__________________________. Antropologia, Raça e os Dilemas das Identidades na Era da Genômica. In: Raça como questão: história, ciência e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. 316p.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. pp. 09-67.São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

TODOROV, T. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Tradução Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

 

 

Fonte: Scribd

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