Racismo estrutural e preconceito implícito em tecnologias médicas: agora que sabemos, o que podemos fazer?

Cada vez mais, sinto que as pessoas de má vontade usam o tempo de modo muito mais eficaz do que as pessoas de boa vontade.

Martin Luther King Jr.

As disparidades raciais em saúde comprometem de maneira sistêmica o direito de acesso à saúde garantido pela Constituição de 1988 e os princípios de justiça social no âmbito da saúde. Por ocasião da pandemia de coronavírus, as taxas desproporcionalmente mais elevadas de pessoas negras infectadas e mortas por Covid-19 do que as de pessoas brancas levaram à intensificação da investigação científica sobre essa questão em nível internacional. A conclusão mais plausível a que se chegou foi a da importância de considerar os determinantes sociais da saúde para pensar saúde e doença, argumentando que fatores como condições de vida, acesso desigual aos serviços de saúde e exposição a empregos de maior risco influenciaram significativamente o impacto do vírus nas comunidades negras e indígenas.

A desigualdade social nos resultados de saúde leva a abordar o racismo como problema estrutural, pois é dessa forma que ele se manifesta, como um sistema que permeia e organiza todas as estruturas da sociedade e o institucionaliza por meio de legislações, normas, valores e costumes arraigados na cultura da sociedade. Uma vez institucionalizado mediante leis e práticas corporativas, ele pode se manifestar tanto por ações ou atitudes explícitas de indivíduos quanto pela ausência de um indivíduo identificável. Essa visão implica que os nossos preconceitos individuais, sejam eles explícitos ou implícitos, operam dentro de estruturas sociais amplas (socioeconômicas, jurídicas, educacionais e de saúde), cujas políticas e regras sutilmente tendenciosas perpetuam formas de discriminação em toda a sociedade. Infelizmente isso também vale para o campo da assistência à saúde oferecida pelo poder público ou pelas instituições privadas, por exemplo, para populações negras e indígenas. 

O agravante nesse contexto é um tipo de preconceito racial que se pode chamar de implícito. Ele constitui a forma perfeita de perpetuar desigualdades sociais, pois enxergamos somente o efeito dele, sem, no entanto, captar o mecanismo pelo qual ele se reproduz. Podemos observar a dinâmica de funcionamento nas nossas instituições políticas, econômicas, educacionais, de saúde, de segurança e de justiça criminal, pois todas elas preconizam igualdade de acesso e participação para todas as pessoas. Porém, se, no interior dessas organizações, a engrenagem do sistema estiver configurada para favorecer determinados grupos raciais em detrimento de outros, ela acaba por reforçar preconceitos sociais, justificando privilégios e mantendo o status quo. E isso leva a um efeito cascata de desigualdade na distribuição e qualidade de empregos, atenção à saúde, direitos políticos e civis, justiça e financiamento de pesquisa etc. Essa forma sutil e indireta de manifestação do racismo estrutural tem sido referida na literatura científica como preconceito racial implícito.

O preconceito implícito se refere a atitudes, crenças ou estereótipos automáticos e inconscientes sobre raça, etnia, idade, status de deficiência, gênero, status econômico que operam fora de nosso pensamento consciente e, por isso, só podem ser medidos indiretamente. O preconceito implícito está oculto nas camadas mais profundas da nossa mente, mas sutil e paradoxalmente se manifesta à vista de todos e todas, pois influencia nossos julgamentos e nossas decisões acerca de pessoas e grupos sociais, podendo levar a comportamentos discriminatórios (muitas vezes fatais) de maneira inconsciente e coexistir de modo conflitante com nossas crenças conscientes. Por exemplo, uma pessoa pode acreditar e agir na sociedade de acordo com seus valores de igualdade e justiça social e simultaneamente manter, sem saber, crenças e estereótipos implícitos que podem levá-la à prática de discriminação por meio de preconceito implícito sem intenção. Mas é importante não focar apenas nos indivíduos, pois o preconceito implícito pode se manifestar sem que haja um indivíduo perpetrador, a exemplo de algumas tecnologias médicas.

Na medicina, essa forma de preconceito pode afetar diagnósticos e tratamentos, colocando em risco e em dúvida a equidade no cuidado de saúde. A título de ilustração desse fato, este artigo se detém no uso de dois aparelhos médicos de uso geral, o espirômetro e o oxímetro de pulso, que reproduzem, em seu funcionamento, o preconceito racial implícito. Nesse caso, a questão a ser considerada é que o espirômetro e o oxímetro de pulso são amplamente utilizados para realizar diagnóstico e monitoramento de saúde em uma população etnicamente diversa, tanto por médicos em consultas e laboratórios de exames clínicos quanto por pacientes em domicílio. Mas ambos promovem leituras baseadas em um padrão: o homem branco e a pele clara como critério universal para avaliar e tratar a saúde de pessoas não brancas. Isso compromete a qualidade da assistência à saúde de pessoas negras. 

O uso do espirômetro, aparelho que mede a capacidade pulmonar da pessoa, baseou-se historicamente na especulação de que haveria uma diferença na estrutura do aparelho pulmonar de pessoas negras e de pessoas brancas. Essa especulação foi aceita como verdade sem qualquer base empírica e norteou o uso do espirômetro, sendo alvo de críticas contundentes de intelectuais negros, alegando que a desconsideração das dimensões sociais nessa questão é um erro, já que a diferença de capacidade pulmonar constatada nos estudos se devia às condições de emprego, saneamento, moradia, segurança, acesso a cuidados de saúde subjacentes. 

O oxímetro de pulso, um dispositivo médico que se coloca no dedo para medir os níveis de oxigênio no sangue, é outro exemplo que reforça a preocupação com o uso de aparelhos de diagnóstico baseados na crença da diferença de raça, pois ele gera resultados imprecisos e consequentemente prejudiciais para a população negra. Embora a imprecisão da leitura do oxímetro de pulso em pele escura seja conhecido desde 1990, a ampla divulgação somente ocorreu em dezembro de 2020, em plena pandemia de coronavírus. Nessa ocasião, um estudo constatou que o oxímetro de pulso apresenta uma leitura imprecisa em pacientes negros, resultando em medições dois a três pontos superiores à medida real indicativa de hipoxemia oculta. Pode-se ter a dimensão do risco representado pela imprecisão dos oxímetros de pulso a partir de um estudo realizado nos EUA no período de janeiro de 2020 a fevereiro de 2021, revelando que erros de leitura no oxímetro de pulso podem ter levado pacientes negros com Covid-19 a correr riscos potencialmente fatais por enfrentarem um atraso de quatro a cinco horas para acessar a terapia de oxigênio suplementar e por terem menor possibilidade de internação hospitalar.

Os casos em questão evidenciam a necessidade de reconhecer o efeito do preconceito implícito e de adotar estratégias para reduzir sua força e seu impacto no dia a dia de pessoas negras. É preciso que a pauta do racismo estrutural e do preconceito implícito faça parte da grade curricular dos cursos de formação de todos os profissionais de saúde. É preciso garantir que dispositivos médicos funcionem de modo preciso para todas as pessoas, considerando as diferenças advindas da cor da pele. Trata-se de um direito à saúde a ser implementado.

Confira o artigo completo com fundamentação na literatura científica sobre o assunto: https://evaniamvieira.com.br/reverterconceitos/preconceito_em_tecnologias_medicas/


*Evânia Maria Vieira

 Socióloga pela FESPSP, instrutora de atenção plena e educadora em saúde para o alívio da dor; terapeuta em práticas integrativas e complementares. Pós-graduação em medicina comportamental e certificação como instrutora profissional de mindfulness para a promoção da saúde (UNIFESP). Aprimoramento em fisiopatologia e terapêutica da dor na Faculdade de Medicina da USP e pós-graduação em dor pelo Instituto de Ensino Albert Einstein. Formação Básica em Antroposofia. Formación  Profesor de Mindfulness y Compasión para la Salud MBPM   de Respira Vida Breathworks em andamento. Cofundadora e coordenadora do Grupo de Estudos Reverter Conceitos.

@educadoraevania


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