Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver na dor”. Achille Mbembe
Nos últimos anos, diversas denúncias sobre assassinatos e violências nas periferias de Vitória, Espírito Santo, têm ganhado visibilidade pelas redes sociais e mídia alternativa. Corpos de jovens negros e periféricos continuam a ser encontrados em becos e vielas, mas a grande questão é: quem se importa? Como moradora, ativista e estudante de Direito, percebo que a vida humana se tornou um jogo de poder que não gera soluções reais. Até quando viveremos nesse ciclo de descaso?
Embora denúncias semanais sejam enviadas ao Ministério Público, à Secretaria de Direitos Humanos e à Defensoria Pública, a resposta oficial é sempre a mesma: “não há denúncia formal na corregedoria”. Como denunciar abusos cometidos por policiais, se eles próprios são parte da estrutura de fiscalização? Isso nos leva a questionar se o sistema de denúncias formais ainda é eficaz ou se é necessária uma organização independente para resistir e denunciar.
A teoria de Achille Mbembe sobre necropolítica é essencial para entender esse contexto. Mbembe revela que o Estado exerce não só o poder sobre a vida, mas também um controle invisível sobre quem pode ser exterminado. A morte na periferia não é um acaso; é uma decisão política que recai sobre corpos negros e periféricos.
Em outubro de 2024, o jornal Tribuna anunciou que 946 novos policiais seriam enviados às ruas do Espírito Santo para “combater o crime”. Mas será que a violência se resolve apenas com mais policiais? A declaração do Coronel Douglas Caus, sobre “bandidos saindo presos ou no saco preto”, exemplifica a desumanização das vítimas. A “resistência à prisão” descrita no Código de Processo Penal muitas vezes legitima a execução extrajudicial de corpos marginalizados. Como essa brutalidade pode ser justificada em um país onde a pena de morte é proibida?
As vidas negras e periféricas importam para o Estado? A frase “vidas negras importam” frequentemente se torna um slogan sem ação concreta. Governantes que se dizem aliados contra o racismo, na prática, mantêm um sistema que perpetua a exclusão. O estado de coisas inconstitucional, que remonta aos tempos da escravidão, persiste. Políticas públicas se mostram superficiais e ineficazes, reforçando a necropolítica onde vidas negras são consideradas descartáveis.
É urgente pensar em soluções que transcendam denúncias e discursos vazios. A resistência nas periferias é constante, mas acontece à margem de um sistema que ignora suas reivindicações. A luta pela vida das populações negras e periféricas precisa ser mais do que retórica: é uma causa que deve ser concretizada em ações transformadoras.
Como exemplo de resistência, destaca-se o Fórum Estadual de Insegurança Pública do Espírito Santo, criado pela sociedade civil organizada. Movimentos sociais, coletivos, organizações populares e famílias de vítimas do Estado se uniram para pressionar as instituições e exigir novas políticas de segurança pública. O Fórum é uma ferramenta estratégica para confrontar a violência policial e propor alternativas que garantam a segurança e a dignidade das comunidades.
Apelo para que todos e todas organizem-se de forma ampla, construindo uma rede de resistência capaz de confrontar o poder do Estado, que historicamente prioriza a violência ao invés de soluções reais. A mobilização coletiva é o caminho para romper esse ciclo de opressão e garantir que todas as vidas, especialmente as negras e periféricas, sejam valorizadas e protegidas. Unidos, podemos exigir a justiça que nos foi negada por tanto tempo.
Crislayne Zeferina – Mulher negra e periférica, pedagoga, pós graduada em pedagogia social e gestão de projetos, estudante de direito – CESV, presidenta do Instituto Conexão Perifa, presidenta Nacional da Nova Frente Negra Brasileira – NFNB, integrante e cofundadora do coletivo beco, membra do Fórum Estadual de Insegurança Pública do Espírito Santo, coordenadora do grupo de estudo criminologia nas periferia de Vitória.
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