Quantas pessoas vivem em situação de rua no Brasil? Quantas são mortas a cada ano? Qual a cor, o gênero, a condição de vida dessas pessoas? Apesar do país ter um censo considerado abrangente e detalhado da população geral, crianças, adolescentes e adultos em situação de rua são ignoradas pelas estatísticas e, consequentemente, pelas políticas públicas. Com o intuito de dar maior visibilidade aos problemas e principalmente à violência que atinge essa população, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) realizou em Brasília, nos dias 13 e 14 de setembro, o seminário Violência Letal contra a População em Situação de Rua no Brasil: Construir Propostas para Enfrentar Aspectos de um Genocídio.
Do Ministério dos Direitos Humanos
Na opinião de Markinhus Souza, conselheiro do CNDH e representante do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, “o principal dado que se tem hoje sobre a população de rua é a própria falta de dados que digam quantas pessoas estão nas ruas e quantas estão sendo mortas”.
Essa invisibilização da população de rua também preocupa o defensor público federal Renan Sotto Mayor. Na opinião de Sotto Mayor, a população em situação de rua é invisibilizada até mesmo no campo dos Direitos Humanos. “A inclusão da população de rua é sempre a inclusão pelo direito penal. O simples fato de estar em situação de rua já gera uma criminalização”. Renan, que já foi coordenador do Grupo de Trabalho (GT) Rua da Defensoria Pública da União (DPU), avalia ainda que na prática, para o Estado, a vida dessas pessoas não importa. “Como que se vai pensar em políticas públicas se não se sabe nem quantas pessoas são?”, questiona o defensor.
O seminário trouxe para Brasília representantes dos movimentos de população de rua de vários estados Brasil, além de pesquisadores e operadores do direito. Em uma das mesas, “Cenários da violência letal contra a população em situação de rua e a correlação com o Genocídio da População Negra”, a integrante da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio e do grupo Kilombagem de São Paulo, Cathiara Oliveira, fez uma fala contundente denunciando a responsabilidade do Estado nas mortes da população negra e em situação de rua no Brasil. “Se a população de rua a maioria é preta e não tem política para elas, então nós estamos confirmando que esse genocídio de Estado é informalmente formal”, conclui Cathiara.
Na mesma mesa, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão e também conselheira do CNDH, Deborah Duprat, foi enfática ao retomar na formação do Estado brasileiro às bases da violência que atinge tanto a população negra de uma forma geral quanto à população em situação de rua, que é, em sua maioria, negra. Para Duprat, o país se inicia como um episódio branco, masculino e colonial. “Invadem terras indígenas, apropriam-se de corpos negros e suas forças de trabalho, cria-se uma burguesia ociosa que se vale do trabalho escravo e institui-se o sistema das capitanias hereditárias, que nada mais é do que dividir esse grande território em favor de algumas poucas famílias”.
Após o diagnóstico, a procuradora elencou desafios que precisam ser enfrentados como: a recuperação da Constituição Federal, “na sua versão emancipatória, libertária, de direitos para todas as pessoas, de reconfiguração do mundo e do espaço social”; o controle da polícia e o combate à lei que amplia as atribuições da justiça militar. “É preciso imaginar como se controla a polícia nas atividades de policiamento ostensivo, porque essa polícia não tem controle. Ela mata sem que nada fique registrado. E tem-se ainda a figura dos autos de resistência que na prática é a autorização para matar”, destacou Deborah. A revogação da Emenda Constitucional 95 e o fortalecimento do sistema público de comunicação também foram mencionados pela procuradora como desafios.
De acordo com dados do Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Material Reciclável (CNDDH), entre março e agosto de 2017 – apenas cinco meses – foram registradas 419 denúncias de violência e 69 assassinatos de pessoas em situação de rua no país. Foram registradas ainda outras 25 mortes – apenas no estado de São Paulo. No mesmo estado, ao menos 10 pessoas morreram de frio, por negligência do poder público. Segundo os dados do CNDDH, o Estado aparece como principal agente violador de direitos da população de rua. Das denúncias encaminhadas ao Centro, os agentes públicos foram responsáveis por 65%.
Para Anderson Miranda, sobrevivente da chacina da Sé e fundador do MNPR, “É necessário também criminalizar o Estado. As pessoas não estão na rua porque a rua é bonita, e não necessariamente porque são usuárias de drogas. Mas a maioria que está na rua é negra e pobre”. Anderson propõe ainda a federalização dos crimes de massacre, para que quem esteja realmente matando seja criminalizado.
Na opinião do conselheiro representante do Movimento Nacional da População de Rua, Leonildo Monteiro o preconceito contra a população de rua se tornou banal e esta população está sendo dizimada. “Para a sociedade e agentes públicos é normal ver um sujeito negro morto nas ruas… Mas imagina se fosse o cachorro deles, que gasta R$100, R$200 por dia? A vida do ser humano que está nas ruas não vale nada”, denuncia Leonildo.
Os participantes do evento cobraram também do CNDH o monitoramento dos conselhos estaduais de direitos humanos, para que haja por parte desses órgãos ações voltadas para a população de rua, bem como capacitação da polícia militar dos estados nas abordagens desta população. Outra sugestão do grupo foi a inclusão de organizações que trabalham com crianças e adolescentes em situação de rua no Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (Ciamp – Rua)
O Seminário foi encerrado com uma plenária que teve como objetivo a construção de estratégias para o enfrentamento da violência letal contra a população em situação de rua. Foi decidida a criação de um grupo de trabalho que dará prosseguimento às discussões e fará a compilação das questões debatidas e da sistematização das propostas apresentadas, que farão parte do documento final do evento. Dentre os desafios para o grupo que será formado – e que contará participação de especialistas, representantes da população de rua, do CNDH, das universidades e institutos de pesquisa – está a elaboração de uma proposta de levantamento de dados sobre as mortes de crianças, adolescentes e adultos que estão em situação de rua.