RACISMO na UNB

No dia 22 de novembro de 2010, eu, Letícia Martins dos Santos, me dirigi até o instituto de Biologia da UnB onde se realizou a prova de ingresso no mestrado em ecologia. Quando cheguei encontrei o aluno conhecido como Flávio Brandão, que fazia parte da minha turma de graduação em Biologia (2/2004, semestre em que ingressei na UnB pelo sistema de cotas) e que em outro momento durante o curso, em uma loja de brinquedos de um shopping de Brasília, fez um comentário racista quando olhávamos bonecas.  Eu disse que não havia bonecas negras e que meus filhos não poderiam se identificar com as bonecas que estavam ali. Neste momento ele pegou um macaco de pelúcia e disse que meus filhos deveriam se identificar com aquilo.  Depois que eu me afastei do grupo de amigos ainda na loja, os outros colegas de graduação pres entes pediram que ele se desculpasse. Ele então se desculpou. Naquele momento não o denunciei por racismo com medo de represálias por parte dos outros colegas da graduação durante o resto do curso, ou de ser isolada do grupo, pois morava sozinha e não tinha outros amigos. Assim como também fui apelida de seqüela no trote pelos veteranos e durante toda a graduação quase todos os colegas de curso só se dirigiam a mim por este apelido. Esses fatos me afastaram de várias atividades coletivas a partir do momento que eu comecei a sentir que o apelido foi aplicado para me ofender e que não era só uma brincadeira. Senti-me inferiorizada pelos outros estudantes em vários momentos, o que me levou a algumas crises de depressão e desânimo para freqüentar atividades acadêmicas coletivas como aulas e outras atividades onde eu estaria entre aquelas pessoas que se referiam a mim como seqüela. Durante muito tempo tive que me conformar e me calar diante deste apelido humilhante, pois era a co ndição para que eu pudesse freqüentar o Centro Acadêmico da biologia sem ser isolada pelos demais alunos que se divertiam em me chamar de seqüela.

Às 8:30 entrei no auditório 1 do instituto de biologia onde fiz a primeira parte objetiva da prova. Antes do início da prova questionei o professor sobre o fato de fazermos as provas em cadeiras tão próximas que todos podiam ver facilmente a prova dos outros candidatos pois e achei que comprometeria a confiabilidade do resultado daquela etapa. Neste momento nada foi feito para sanar o problema. A prova terminou as 9:30 conforme programado.

No intervalo entre a primeira e a segunda prova ao encontrá-lo novamente fora do contexto repressor em que eu estava antes eu o perguntei diante dos amigos dele se ele não me chamaria de macaca novamente, pois agora eu estava consciente da gravidade do que havia acontecido comigo durante todo este tempo e dos efeitos de todas essas agressões na minha vida. Depois de ter feito isso eu entrei no auditório e não vi o que houve do lado de fora.

Alguns minutos antes das 10:10 (horário indicado por um dos professores) entrei novamente no local oficial de realização da prova de Inglês conforme a programação oficial publicada, sendo este lugar o auditório 1 do instituto de biologia. Sentei-me na primeira fileira. Poucos minutos depois o professor José Francisco Gonçalves Júnior entrou no auditório seguido do aluno Flávio Brandão e outros colegas que entraram e se identificaram, conforme o edital. O professor pediu que eles se dirigissem a outra sala e apontou o dedo para mim indicando que eu deveria seguir com eles. Eu disse que preferia fazer a prova naquele local já que eu estava sentada e havia retirado os sapatos.  Além disso, eu não sabia quais seriam as condições de acomodação na outra sala. Eu não declarei, mas o principal motivo era porque eu não me sentiria à vontade para fazer uma prova importante para minha carreira acadêmica junto a uma pessoa que já havia  me agredido com uma atitude racista, pois eu não queria expor aquele caso a todos do auditório.  O meu medo era que ele tentasse me desestruturar psicologicamente com outros comentários racistas. O professor insistiu que eu me retirasse e eu insisti em ficar e sugeri que ele chamasse outra pessoa para ir para a outra sala.  Ele então se dirigiu aos outros alunos dizendo que eu só queria tumultuar o processo seletivo. Então eu disse que eu só queria fazer a minha prova em paz.  Ele então disse que neste caso eu deveria me sentar no fundo do auditório. Eu me lembrei da segregação racial americana onde nós negros deveríamos nos sentar no fundo das salas de aula e dos ônibus, portanto considerei aquela atitude racista e confirmei que permaneceria ali onde eu estava. Diante da minha recusa em me sentar no fund o do auditório ele se dirigiu a todos com a expressão “Tem gente que tem espírito de porco mesmo”. Devido ao histórico da participação de biólogos em formulação e propagação de idéias de eugenia – que divide os seres humanos em raças e se refere a nós negros como seres sub-humanos e portanto mais próximo de animais e serviu de desculpa para a escravidão e diversos genocídios como por exemplo o holocausto –  eu me levantei e disse a todos que durante minha graduação um aluno já havia se referido a mim me comparando a uma macaca e também que durante minha graduação os outros alunos me apelidaram de seqüela  e que portanto o professor  deveria pedir a outra pessoa que se  retirasse do local oficial de realização da prova como uma forma de me defender do racismo disfarçado de injúria. Neste momento um aluno que se sentava no fundo e ouviu toda a agressão se voluntariou para se retirar da sala em meu lugar.  Depois disso feito o professor e o outro aluno se retiraram da sala e (outro professor) presente me entregou a prova de inglês e eu iniciei a minha prova. Depois deste fato percebi uma movimentação entre os professores que saiam e entravam no auditório e conversavam muito do lado de fora. Então o professor Paulo Bretas entrou, se aproximou do local ande eu estava sentada fazendo a prova de cabeça baixa e não falou nada, só ficou me olhando. Durante a prova eu me senti muito humilhada perante os outros candidatos e tive dificuldades para me concentrar. Mesmo com todas as dificuldades eu realizei a prova com excelência, pois estou segura do meu domínio sobre o conteúdo cobrado. Ao terminar a prova e entregá-la ao professor eu me sentei novamente e chorei muito dolorosamente diante do professor Paulo Bretas.  Ele não me perguntou se eu precisava de ajuda ou de conforto, só me olhou friamente e não disse nada.  Eu então me levantei e deixei o auditório.

Na saída encontrei o meu namorado (Rudolfo Boing) contei a ele o que havia ocorrido e me dirigi à faculdade de educação onde havia uma atividade temática sobre o dia da consciência negra, para tentar encontrar alguém para me ajudar. Encontrei um amigo e contei superficialmente o que havia ocorrido e ele me encorajou a denunciar.

Voltei para o local de realização da prova e ao chegar o aluno que antes havia feito o comentário racista já mencionado passou por mim junto com outros alunos repetindo a palavra açaí em sua conversa. O que eu entendi como uma referência a cor da minha pele.

Dirigi-me ao auditório e encontrei o professor José Francisco Gonçalves Júnior na porta e ele pediu a minha identidade. Eu o informei que entraria com um processo de racismo contra ele e pedi que ele me informasse o seu nome completo, pois eu ainda não o conhecia. Então descobri que aquele mesmo homem que havia me insultado e humilhado diante de todos seria o meu orientador caso eu passasse na prova. Então ele me informou que agora os candidatos ficariam intercalados, portanto se não houvesse cadeiras disponíveis eu teria que me dirigir à outra sala de qualquer forma.  Eu entrei e assinei a lista de presença e então me dirigi aos candidatos presentes perguntando a todos se alguém ali estava disposto a testemunhar sobre os fatos ocorridos. Então o outro professor presente me interrompeu e disse que eu não ti nha o direito de fazer aquilo naquele momento e que eu estava atrapalhando o processo seletivo.  Então eu informei a ele que em casos de racismo eu precisaria de testemunhas. Os candidatos, na minha opinião, reprimidos pelo processo seletivo, ficaram calados.

Procurei um assento de acordo como a nova regra. Só havia duas cadeiras no fundo do auditório juntas de forma que não havia uma forma de intercalá-las.  Neste momento o grupo que havia saído para se fazer a prova na outra sala chegou na porta informando que outra atividade estava sendo realizada na sala para onde foram direcionados. Então resolvi me sentar em uma das duas cadeiras no fundo do auditório como ele havia me sugerido para que a questão se acabasse logo. O professor José Francisco Gonçalves Júnior saiu com este grupo e outro professor (nome) falou que eu não poderia permanecer ali por causa da nova regra dos assentos. Eu me levantei novamente e me dirigi à saída do auditório. Este professor então me acompanhou até a sala que segundo o professor JFG Júnior havia sido reservada para esta terceira etapa do proce sso seletivo. Quando chegamos lá havia outra atividade sendo realizada e então nos dirigimos a um terceiro lugar ao lado, onde o outro grupo já havia se acomodado, mas segundo o professor que me escoltava, também não havia espaço para mim naquela sala.

Neste momento eu não pude mais conter o choro diante de toda aquela humilhação pública e alguns professores e outras pessoas ficaram me olhando naquela situação, mas também não fizeram nada.

O professor que me escoltava então disse que arranjaria um lugarzinho onde eu faria a prova. Então eu informei a ele que eu não teria condições emocionais e psicológicas para fazer uma prova tão importante naquele momento. Ele insistiu para que eu fizesse a prova dizendo que se eu não fizesse a prova junto com os outros candidatos as portas do departamento se fechariam para mim.  Entendi aquela afirmação como uma ameaça. Ele falou isso mais algumas vezes então eu perguntei se eu poderia fazer a prova em outro momento e ele me informou que isso não seria possível.  Então eu disse novamente que não faria a prova naquele momento que eu estava em desvantagem diante do meu estado notavelmente abalado, já que eu não conseguia controlar os impulsos de choro. Ele continuou a me pressionar para que eu fizesse a prov a dessa vez dizendo que se eu fizesse a prova naquele momento eu teria várias oportunidades no departamento. Então eu argumentei que não queria mais fazer a prova porque mesmo se eu passasse aquele homem que me humilhou seria o meu orientador e que eu não poderia realizar um projeto com alguém que achava que eu tinha o espírito de um animal. Ele, que presenciou o fato ocorrido anteriormente no auditório, negou que o professor JFG Júnior havia se referido a mim como uma pessoa com espírito de porco. Então eu entrei no auditório novamente e perguntei a todos se alguém ouviu o professor se referir a mim desta forma. Uma candidata cujo nome eu não sei levantou a mão, mas logo se retraiu. Então o professor JFG Júnior confessou diante de todos que havia dito aquilo sim.

O outro professor que me escoltava me afastou da sala e continuou a insistir para que eu fizesse a prova. Então eu o informei que não faria e que procuraria um advogado e me defenderia judicialmente. Então ele disse que se eu fizesse a prova eu teria muitas oportunidades dentro do departamento. Eu me senti ofendida por acreditar que a intenção dele era me calar com um tipo de suborno. Comecei então a me direcionar para a saída do instituto de biologia, mas ele continuou me escoltando com as ameaças e assédio moral. Então eu disse a ele que a única diferença que havia entre nós era o fato de ele ser corrompível e eu não. Saí correndo para que ele não insistisse mais.

Quando saí de lá não sabia a quem procurar pois meu celular estava com o meu namorado. Então resolvi ir até a reitoria pedir ajuda jurídica e um telefone para ligar para minha mãe e para meu namorado.

Fui até o gabinete do vice-reitor, mas ele estava em uma reunião fora. Contei à recepcionista que eu havia sido vítima de um ato racista no departamento de ecologia, então ela me direcionou à recepcionista do Reitor. Ela me perguntou o que havia ocorrido. Quando eu disse que era um caso de racismo ela me olhou e disse: “ah, racismo é? Não posso fazer nada aqui.” Então eu pedi um auxílio jurídico e ela disse que eu deveria procurar a ouvidoria.  Então eu pedi o telefone para ligar para a minha mãe e para meu namorado e ela disponibilizou o da recepção. Ela pediu o número para discar e quando eu disse que era (062) ela disse que não poderia fazer ligações de longa distância e que não poderia me ajudar. Em nenhum momento ela me convidou a entrar no gabinete. Este diálogo aconteceu na porta do gabinete diante de outro funci onário que eu acho que era um segurança e que não se manifestou. Diante de todo o descaso e cinismo com a minha denúncia me senti mais uma vez humilhada e impotente e isso me levou ao choro novamente. Neste momento tive uma alteração respiratória emocional e então ela chamou outra funcionária, que era negra, que me levou para um corredor ao lado da copa do gabinete onde o copeiro e ela me ofereceram água que eu bebi e um chá que eu não tomei.  Esta funcionária me emprestou seu telefone celular pessoal que eu usei para ligar para minha mãe em Goiânia e depois para o meu namorado. Depois que desliguei o telefone saí do gabinete e fui ao encontro do meu namorado e de um amigo.  Então nos dirigimos ao Centro de Convivência Negra onde fui ouvida e orientada a fazer este relato.

Letícia Martins dos Santos

associação lésbica feminista de brasília – coturno de vênus
cx postal 3546 . 700089-970
Brasília – DF. Brasil
www.coturnodevenus.org.br

 

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