— Nossa, que gatinho!
— Eu prefiro meu pretinho.
— Amiga, quem gosta de preto é a polícia.
Gabriela Nunes estava com 24 anos de idade, no intervalo entre aulas da universidade, comprando um milho cozido, quando uma colega começou o diálogo. Algumas frases depois, tinha voltado aos 7 anos de idade, quando o padrinho jogava sinuca em um bar na esquina de casa, em Embu das Artes, e foi assassinado por policiais. O mesmo tipo de terror que sentira aos 4 anos de idade, quando um amigo da mãe foi alvejado na porta de sua casa.
— Amiga, não fala assim, por favor. Meu padrinho era um homem preto e foi assassinado pela polícia quando tinha 25 anos de idade.
Enquanto argumentava, esperando uma retratação da colega, Gabriela via o corpo do padrinho durante o velório, repleto de algodões. A atualização de um trauma, característica do racismo cotidiano, que suspende tempo, espaço, e nos carrega de volta a uma situação extrema.
Gabriela pediu duas vezes para que a amiga se desculpasse e retirasse o que disse, porque ouvir aquela frase racista era muito doloroso.
— Preto é feio. Quem gosta é a polícia e ponto final.
Negra de pele clara, Gabriela ainda ouviu que não era negra.
Aquela não foi a primeira experiência de racismo vivida por ela. No colégio particular de elite onde a avó era faxineira e Gabriela estudou por alguns anos, era chamada de macaca, fedida, piolhenta; ouvia as palavras preta e pobre também como xingamentos. “Mas no colégio era todo mundo branco. Na Unip tem muita gente como eu, negra, parda, cor de papelão como dizem. Achei que não fosse passar por isso lá”.
Abalada, procurou uma professora negra sensível à temática racial para buscar orientações. Camila Costa, que ministrava a disciplina de antropologia para a turma de Gabriela, era muito solicitada por estudantes buscando orientação e suporte emocional em episódios de racismo e sexismo dentro da universidade. Orientou Gabriela a registrar um boletim de ocorrência. Com o BO de injúria racial em mãos, Gabriela começou a receber ameaças da aluna: “ela falava que ia cortar meu rosto de fora a fora para nunca mais esquecer dela. Procurei a faculdade inúmeras vezes e nunca fizeram nada.”
Apesar do apoio recebido das amigas negras, Gabriela conta que passou a ser hostilizada por pessoas de toda a universidade. Ouvia que não entendiam o motivo daquilo, já que ela nem era preta. “Eu chorava por medo. Chorava porque não era preta, nem branca, não sabia mais o que era. Fiquei deprimida, comecei a tomar remédio e acabei abandonando o curso”. Desde o final de 2017, quando se desligou da Universidade Paulista (Unip), Gabriela não falava sobre essa história.
Até que no último 1º de outubro, o The Intercept publicou a reportagem “Após aluna relatar ter sido vítima de racismo, Unip demite testemunhas”. Gabriela retomou contato com a professora Camila, quando soube que ela também estava afastada da Unip.
“Chegou um momento em que eu era professora com quem os alunos vinham conversar sobre todos os problemas, desde a vontade de se matar até o racismo”, conta à coluna Camila Costa. “Três vezes relatei episódios de racismo ao coordenador do curso de relações internacionais e ele me mandou não fazer nada”. No caso de Gabriela, a professora Camila afirma que levou à coordenação do curso da unidade Pinheiros e ouviu que, como professora, não deveria se envolver em nenhuma outra questão fora da sala de aula. Disseram que casos de racismo não diziam respeito a ela, o que foi corroborado dois dias mais tarde, pelo coordenador geral do curso de relações internacionais, no campus Paraíso. O coordenador disse que professores não eram assessores jurídicos, nem psicólogos, nem psiquiatras, então eu não deveriam se envolver em denúncias de racismo. “Não é interessante para a Universidade. Não é interessante para você”, ouviu Camila em tom de ameaça.
No episódio reportado pelo The Intercept, este coordenador de curso, Enzo Fiorelli Vasques, teria se dirigido a uma jovem negra, na frente de toda a sala de aula, na presença de um professor e outro coordenador, de forma vexatória: “Gosto muito de vocês, negros, inclusive tenho amigos africanos com esse mesmo ‘tipo’ de cabelo”. Camila afirma que não se surpreendeu com o que Enzo disse, mas se espantou que tenha dito na frente de testemunhas. “Sempre que eu tentava me colocar, o professor Enzo comentava dos cachos do meu cabelo, de como é bonita minha cor de pele, de como meu sotaque cearense é saboroso. Eu tentava falar, e ele me cortava. Minha negritude e o fato de ser nordestina pareciam interessar mais que qualquer assunto importante a discutir”.
Em um mês de setembro, um aluno de Camila se suicidou, aos 23 anos de idade. Ela sugeriu uma palestra, no contexto do setembro amarelo, para lidar com o tema que estava tomando a atenção de muitos estudantes. “Não somos psicólogos, nem psiquiatras”, ouviu mais uma vez. “A Unip promete formar cidadãos, promete os melhores cursos, as melhores condições, mas mente, porque esconde os casos de racismo, suicídio, assédio moral, sexual”, diz Camila, que está afastada da universidade por motivos de saúde. “Quando os alunos perguntaram da minha ausência na sala de aula, responderam que a Camila está louca. A Camila não está louca.
O professor Enzo Fiorelli Vasques não respondeu meu e-mail de pedido de entrevista para esta coluna. Sem tratar dos casos específicos, a Universidade Paulista respondeu à minha solicitação de entrevista com um e-mail: “A questão racial dos negros é uma preocupação de nossa escola há décadas. Tanto é assim que o Grupo Unip-Objetivo apoia a Universidade Zumbi dos Palmares, desde que esta foi fundada.” Diante da menção à Zumbi dos Palmares, procurei a assessoria de imprensa da instituição, que não agendou uma entrevista nem comentou a resposta da Unip até o prazo acordado.
Outra estudante do curso de relações internacionais da Unip que preferiu não se identificar, me contou, por telefone, que o coordenador Enzo sempre fez questão de comentar o fato de ela ser negra a cada encontro. “Sempre fez pelo menos um comentário sobre o meu cabelo, a cor da minha pele realçada pela cor da blusa. Uma vez, fui com uma colega branca à sala dele falar sobre atividades complementares. Olhando fixamente para ela, sem se dirigir diretamente a mim, começou a dizer que estava um mimimi desse pessoal negro, que ele tinha um irmão assim, passando o dedo no braço, para marcar que estava falando sobre a pele escura”. Constrangidas, as duas alunas foram embora e não falaram mais no assunto até a notícia que mencionava a retaliação aos professores que foram testemunhas em uma sindicância interna.
Luiz Fernando Mocelin Sperancete foi demitido. E Fábio Maldonado não recebeu atribuições de aula neste semestre. “Estou em um limbo. Eu fui demitido durante licença médica, mas não pagaram as verbas rescisórias. Não recebo salário, mas também não deram baixa na minha carteira de trabalho para eu receber o seguro desemprego. Não me pagaram qualquer direito trabalhista”, registra Fábio.
“Decidi contar sobre o racismo que vivi para mostrar que é um padrão dentro da Unip”, diz a aluna que preferiu não se identificar. “Normalmente, prefiro não falar porque machuca. Mas não podia ficar em silêncio diante do que aconteceu com a professora Camila, com o professor Fábio, e com as outras alunas que se posicionaram. Se minha dor pode ajudar alguém, é melhor contar também”. A aluna ressalta que viveu excelentes experiências na Unip e que gosta muito do curso, por isso é ainda mais importante se movimentar para que não haja espaço para o racismo. “Tenho chorado muito ultimamente, quando falo e ouço outros depoimentos. Mas receber o apoio da minha sala, majoritariamente branca, me faz ter esperança. Porque eles também estão preocupados com o racismo.”