Há uma benéfica tendência de construção de indicadores sobre a questão racial no Brasil. A Folha lançou há poucas semanas o Índice Folha de Equilíbrio Racial (IFER), possibilitando a percepção do nosso panorama racial de uma maneira até então inusitada. Indicadores desse tipo são importantes termômetros, favorecendo o monitoramento das desigualdades raciais e o acompanhamento de suas trajetórias nos diferentes aspectos da vida social e econômica. Mas têm seus limites, e devem ser manuseados dentro de análises mais abrangentes do que vem a ser a questão racial no Brasil.
Infelizmente, muitos estudos sobre o racismo no Brasil, baseados em dados estatísticos, ainda apresentam limitações de cunho metodológico, que por vezes mascaram mais do que desvendam. Em geral, ao controlar todas as demais variáveis (educação dos pais, anos de estudos etc.), e comparar indivíduos ou grupos de brancos e negros, chegam à conclusão de que o diferencial de renda só pode ser atribuído ao quesito raça/cor. A lógica é perfeita, embora carente de profundidade. O componente racial, percebido aqui como uma variável como outra qualquer, encobre uma dura realidade. O racismo opera não como mais um elemento, mas como elemento central e estruturante na sociedade brasileira. Está atuando em todas as dimensões e mazelas da vida social, e analisá-lo sob uma perspectiva segmentada e parcial é algo insuficiente.
O racismo, é certo, atinge diretamente a população negra, reduzindo sua renda. Mas não para por aí. O racismo fecha oportunidades de trabalho, impossibilita a ascensão social, interdita ao negro alguns lugares sociais de prestígio. Também persegue, subtrai direitos, mata, gera rejeições e sofrimentos, tudo isso simultaneamente e em escala ampliada. O Estado, bem como a maioria das instituições em uma sociedade racista, se moldou e ainda opera sob a égide do racismo. O sistema escolar, o mercado de trabalho, a distribuição espacial da população e a qualidade da infraestrutura urbana, em síntese, o conjunto desigual e enviesado das ofertas públicas se acumulam em detrimento da população negra.
Antes de ser percebido como um número, o racismo deve ser colocado em seu verdadeiro escalão. Trata-se de uma ideologia que determina o lugar social das pessoas em função de seu fenótipo. E como tal, atua sob os indivíduos a partir da discriminação racial e do preconceito. Mas ele também estende o seu manto sobre o tecido social com o fenômeno da branquitude, transformando o branco na referência e em padrão de comportamento, cultura e estética para o todo social.
Como elemento estruturante de nossa sociedade, o racismo merece um tratamento concernente à sua centralidade. Essa tarefa, no entanto, é algo que vai exigir um esforço cognitivo importante. Nosso referencial teórico para o estudo das sociedades passa ao largo da temática da desigualdade racial. Na visão econômica neoclássica, por exemplo, os pressupostos dos modelos são a igualdade entre os indivíduos que exerceriam sua racionalidade pela via de escolhas e preferências. Do mesmo modo, o paradigma marxista, que percebe os indivíduos associados a suas diferentes classes, não atribui qualquer diferença entre as pessoas que não seja de classe social. A ausência de um paradigma associado às diferenças raciais demonstra que é preciso ir além e entender que o racismo no Brasil conforma uma sociedade desigual justamente ao diferenciar as possibilidades colocadas às diversas inserções, escolhas e preferências de brancos e negros.
Veja-se o caso do mercado de trabalho no Brasil, que funciona como uma das principais correntes de transmissão da desigualdade. Os altos índices de informalidade e rotatividade e os baixos rendimentos que o caracterizam impingem as mais duras perdas à população negra. A cor da pele influi na escolaridade e formação, na empregabilidade, na ascensão profissional e nas condições de aposentadoria do brasileiro. Desse modo, é indisputável o papel central do racismo nesse processo.
O racismo se apresenta no dia a dia do negro, fechando portas e oportunidades que são facilitadas à população branca. E essa é uma experiência histórica. A centralidade do racismo atua na conformação da sociedade brasileira e também na formatação das instituições e do aparato legal, bem como do sistema econômico. O racismo deve ser percebido como o elemento estruturante da sociedade desigual.
O momento é de revisão de alguns paradigmas e incorporação de outros. A certeza é que a questão racial não pode ser mitigada. É elemento central na conformação da sociedade brasileira. O Brasil, sociedade desigual forjada no protagonismo do racismo, tem o desafio do enfrentamento dessa que se constitui em uma das maiores mazelas da história. O racismo, ideologia maior, deve ser enfrentado. Uma sociedade democrática não comporta a vigência de elementos diferenciadores e hierarquizantes. A transformação social do país passa pelo entendimento deste racismo como mote central de nossa desigualdade. O racismo no Brasil é o elemento a ser combatido. Algo tão profundo que merece um tratamento mais estratégico e um enfrentamento com mais e melhores políticas públicas.