Racismo: Por que se matou a psicanalista negra que fazia sucesso no Rio?

Em 2008, às vésperas da comemoração dos 120 anos da abolição da escravidão com a Lei Áurea, pedi um texto especial à escritora Neusa Santos Souza para a edição de 13 de maio do jornal Correio da Baixada, vespertino diário voltado para a periferia do Rio. Eu o editava até a crise mundial de setembro botar o veículo do Grupo Monitor Mercantil no limbo, depois de mais de seis meses de jornalismo cotidiano valorizando o povo sofrido da Baixada Fluminense. Neusa era uma psicanalista lacaniana bem sucedida profissionalmente, negra baiana que, contrariando as estatísticas e as dificuldades de berço pobre, estudou e estudou muito, Medicina e Psicanálise, estabelecendo-se no Rio de Janeiro, onde convivia com intelectuais e dava uma importante contribuição na luta contra a discriminação racial.

por Alfredo Herkenhoff, do Mamapress

Neusa não agüentou chegar a 2009 para comemorar os 120 anos de proclamação da República. No sábado, 20 de dezembro, com cerca de 60 anos de idade, suicidou-se sem antes jamais ter dado sinais de depressão ou de que pudesse um dia recorrer ao gesto extremo de tirar a própria vida. Qual Ismália, lançou-se de alto de uma construção, um imponente edifício onde vivia na Rua General Glicério, Laranjeiras. Ela deixou apenas uma pequena mensagem pedindo desculpas aos poucos amigos do peito por sua decisão radical. Não era casada, não tinha filhos. Sua riqueza material – colecionava artes plásticas da melhor – deve ir para parentes colaterais na Bahia, distantes intelectualmente dela e de seu cotidiano de luta contra o racismo.

No mesmo dia em que se matou, quase à mesma hora, um casal de negros (Umberto Alves e Louise Silva), que saía do Restaurante Nova Capela, ao embarcar tarde da noite num ônibus na Avenida Mem de Sá, na Lapa, foi parar na delegacia, na esteira de um entrevero envolvendo dignidade, preconceito e despreparo policial que só terminaria por volta de meio-dia com depoimentos e IML. O incidente, segundo versão do casal, se deu porque a polícia retirava um negro à força de um ônibus por ter este passageiro gritado que o carro-patrulha estava estacionado irregularmente, atravancando o trânsito. A interferência solidária do segundo negro (Umberto) e sua mulher gerou a confusão truculenta na mesma hora em que, por motivos insondáveis, Neusa Santos Souza, com as mesmas algemas que humilham cidadãos em todas as Lapas da vida, e ainda com o coração desesperançado, saía também forçada de um coletivo chamado Sociedade Brasileira.

Agora, um mês depois de sua morte e de mais um incidente envolvendo preconceitos no espaço público e boêmio da Lapa, é uma honra poder lembrar Neusa Santos Souza, cujo trabalho eu já tivera a oportunidade de apoiar quando, nos anos 90, então na chefia de reportagem do Jornal do Brasil, divulguei o que a psicanalista fazia: Trabalhava na Casa Verde e lá promovia periodicamente almoços temáticos com seus pacientes, acompanhados de amigos e parentes. Num mês era almoço mexicano, noutro indiano, africano ou italiano. E na partilha de momentos em torno da fome, e também fome de afeto, de paladar e de cultura, os pacientes e pessoas queridas guardavam momentos felizes.

Neusa publicou, entre outras coisas, o livro Tornar-se Negro (Graal, 1983), referência sobre as dificuldade emocionais de negros que rechaçam a própria imagem por indução racista de seus algozes históricos. No livro e no artigo a seguir, a baiana lacaniana faz um diagnóstico sobre essa baixa auto-estima de negros e defende a necessidade de prosseguir lutando apesar de tantas vitórias e avanços. Mas a psicanalista nunca teve apoio consistente da mídia. Televisão popular então, nem pensar. No Brasil, a mentira, o silêncio, o desprezo pelas iniciativas positivas, o despreparo e ainda a injustiça quase sempre prevalecem. Por isso, tantos índices ruins… A morte de Neusa, aliás, praticamente, só foi noticiada pela Fundação Palmares.

Mas vamos ao texto de 13 de maio no Correio da Baixada, talvez o último que Neusa tenha assinado num jornal diário antes de desistir de viver, dando a sua própria desistência como um sintoma de resistência radical contra setores violentos e cínicos na sociedade brasileira.

Ei-lo:

Contra o racismo: com muito orgulho e amor

Neusa Santos Souza – Especial para o Correio da Baixada,
em 13 de maio de 2008

Comemoramos hoje 120 anos de abolição da escravatura negra no Brasil. Abolição da escravidão quer dizer aqui fim de um sistema cruel e injusto que trata os negros como coisa, objeto de compra e venda, negócio lucrativo para servir à ambição sem fim dos poderosos. Abolição da escravatura quer dizer aqui fim da humilhação, do desrespeito, da injustiça. Abolição da escravatura quer dizer libertação.

Mas será que acabamos mesmo com a injustiça, com a humilhação e com o desrespeito com que o conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Será que acabamos com a falta de amor-próprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Será que já nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadãos de segunda categoria? Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que nesses 120 de abolição conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros?

Cento e vinte anos de abolição quer dizer 120 de luta dos negros que, no Brasil, dia a dia, convivem com o preconceito e a discriminação racial. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra o racismo desse país que é nosso e que ajudamos a construir: não só com o trabalho, mas, sobretudo, com a cultura transmitida por nossos ancestrais e transformada e enriquecida por cada um de nós. 120 de abolição quer dizer 120 anos de luta contra todos os setores da sociedade e da vida cotidiana: nos espaços públicos e nos espaços privados; na Câmara, no Senado, nos sindicatos, no local de trabalho, nas escolas, nas universidades, no campo, na praça e em nossas casas. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra qualquer lugar em que houver um negro que ainda sofra preconceito e discriminação raciais. Nesses 120 anos, tivemos muitas vitórias, conquistamos muitas coisas, especialmente um amor por nós mesmos, uma alegria, um orgulho de sermos o que somos: brasileiros negros – negros de muitos tons de cor de pele, efeito da mistura, que é uma bela marca da sociedade brasileira.

Nesses 120 anos tivemos muitas conquistas e temos muito mais a conquistar. Nesses 120 anos vencemos muitas batalhas e temos muito mais a batalhar.

Nesses 120 anos comemoramos muitas vitórias e temos muito mais a comemorar.

A escravidão acabou, mas a nossa luta continua!
“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas.”
Tornar-se Negro – 1991 – p. 17-18

 

 

 

Algumas obras que Neusa nos deixou estão em:

Livraria da Travessa

Submarino

A Psicose: um Estudo Lacaniano – Neusa Santos Souza – ISBN 8573092130

 

 

O objeto da angústia. Maria Silvia G. F. Hanna, Neusa Santos Souza. Os onze artigos que compõem este livro giram em torno do Seminário X, A angústia, seminário de Lacan que ocupa um lugar de destaque na psicanálise e no ensino lacaniano por tratar de um dos seus conceitos mais originais. 168 pags., ISBN 85-7577-238-4. Editora 7letras

Vivi e ainda vivo este trabalho de Neusa Santos Souza com a mesma intensidade que vivi e ainda vivo Frantz Fanon, especialmente em “Pele Negra e Máscaras Brancas”.

Tornar-se negro. Neusa Santos Souza. Prefácio: Jurandir Freire Costa. Este livro procura romper a precariedade de estudos sobre a vida emocional dos negros. Diante da flácida omissão com que a teoria psicanalítica tem tratado esse assunto, a autora apresenta reflexões profundas e inquietantes sobre o custo emocional da sujeição, da negação da própria cultura e do próprio corpo. O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre de sua identidade, tomando o branco como modelo de identificação. Edições Graal. 1990. 90 p. ISBN 8570380542

 

Neusa foi e continua sendo referência para a reflexão étnica consciente e consistente:

  • Cartola-grafia: “Causa” do Centro Cultural Cartola. Edna de Assunção Melo Chernicharo – Dissertação Mestre, Programa Pós-Graduação em Psicologia Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Rio de Janeiro. 2010.
  • Racismo, Violência e Direitos Humanos – Considerações sobre a Discriminação de Raça e Gênero na sociedade Brasileira. Dora Lucia de Lima Bertulio
  • Representações do Pensamento Social acerca do Casamento Inter-Racial. Zelinda dos Santos Barros. Enfoques – Revista Eletrônica dos Alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ
  • Mãe Preta. Marília Carvalho Soares

Mulheres, Lideranças Populares em Estudo. Sandra Beatriz Morais da Silveira – UFRGS.

 

Leia Também:

“Tornar-se negro”- As vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social de Neusa Santos Souza

O Mito Negro – Cap. III de “Tornar-se Negro” de Neusa Santos Souza

+ sobre o tema

para lembrar

Ferramenta anticolonial poderosa: os 30 anos de interseccionalidade

Carla Akotirene, autora de Interseccionalidade, pela Coleção Feminismos Plurais,...

Jéssica Ellen, de ‘Totalmente demais’, fala de racismo: ‘Precisamos ser representados’.

Dandara dos Palmares lutou pela libertação dos negros no...

Carta aberta a Beatriz, Joacine e Romualda

Mais de 45 anos depois da ditadura, temos a...

Primeiro Emprego

Recentemente o jornal O Estado de São Paulo publicou...
spot_imgspot_img

Peres Jepchirchir quebra recorde mundial de maratona

A queniana Peres Jepchirchir quebrou, neste domingo, o recorde mundial feminino da maratona ao vencer a prova em Londres com o tempo de 2h16m16s....

O futuro de Brasília: ministra Vera Lúcia luta por uma capital mais inclusiva

Segunda mulher negra a ser empossada como ministra na história do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a advogada Vera Lúcia Santana Araújo, 64 anos, é...

Ela me largou

Dia de feira. Feita a pesquisa simbólica de preços, compraria nas bancas costumeiras. Escolhi as raríssimas que tinham mulheres negras trabalhando, depois as de...
-+=