Radicalismo inaceitável

Enviado por / FonteO Globo, por Atila Roque

A invasão do Capitólio há duas semanas foi um ataque sem precedentes às instituições democráticas nos EUA. A ascensão de Donald Trump à Presidência e sua crescente popularidade junto às bases eleitorais republicanas deixaram o país refém de um líder carismático, tributário de um fundamentalismo religioso abertamente misógino, racista e xenófobo. No entanto a ação violenta de manifestantes apoiados pelo presidente foi a chance que alguns setores do Partido Republicano estavam esperando para esvaziar a influência de Donald Trump e afastar a legenda — e os americanos — desse radicalismo inaceitável. A posse de Joe Biden e Kamala Harris amanhã oferece uma oportunidade para valorizar o papel das instituições democráticas na gestão dos conflitos políticos. A polarização e o tudo ou nada político já mostraram que podem ser fatais para a democracia nos Estados Unidos e no mundo.

O Brasil parece deparar com um dilema semelhante: como não repetir nas eleições presidenciais de 2022 o clima tóxico que resultou na vitória de Jair Bolsonaro? A hipótese mais plausível seria uma candidatura independente, capaz de angariar apoio entre as forças da esquerda, da direita e do centro.

O problema é que ainda não existe uma candidatura natural que ocupe esse espaço. Permanecemos, aparentemente, prisioneiros da polarização.

Diante desse impasse, convém olhar com atenção para o que se passa na sociedade civil. O ano de 2020 foi um momento de visibilidade e fortalecimento de uma rede diversa de iniciativas, que se mostraram capazes de tecer alianças acima de diferenças ideológicas ou de interesses de classe e proporcionaram uma resposta à crise causada pela Covid-19. A mobilização de ativistas sociais, empresários, fundações privadas, lideranças comunitárias, veículos de comunicação, entre outros, provou que a sociedade é capaz de fazer da sua diversidade um suporte para responder com eficácia às emergências da pandemia, agravadas por nossas históricas desigualdades, em particular as decorrentes do racismo estrutural que marca tão profundamente nosso país.

Noutros momentos, vimos mobilizações similares trazerem consequências importantes para o avanço da democracia e da política de redução das desigualdades. Um ótimo exemplo é a Ação da Cidadania Contra a Fome e Pela Vida, liderada pelo saudoso sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que, em meados dos anos 1990, foi capaz de mobilizar mais de 40 milhões de pessoas em ações de combate à fome, impulsionando políticas governamentais que geram frutos até hoje.

Para isso, as forças políticas e as instituições precisam cumprir a sua parte e exercer, sem hesitação, suas responsabilidades constitucionais. A democracia é uma construção coletiva permanente, a exigir diálogo e cooperação, mas também a cobrar responsabilidade (e punição) diante de crimes cometidos por governantes e autoridades públicas, sem exceção. A lição que veio dos EUA não deve ser esquecida.

Atila Roque é historiador e diretor da Fundação Ford no Brasil

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