Um tweet vale mais do que mil imagens?
Por Lúcia Guimarães
A pergunta me ocorreu quando descobri o feed @aminhaempregada criado por um executivo paulista no microblog Twitter. O feed reproduz comentários dignos do Brasil colonial, feitos, em proporção preocupante, por jovens que, suponho, cresceram na cultura digital. Insultos como “vagabunda”, “vadia” e “anta mexicana” são publicados por internautas que não hesitam em se identificar e parecem incapazes de distinguir entre ter um pensamento e perpetuar seu preconceito para a eternidade digital.
O executivo criador do feed, que tem 33 anos e prefere não se identificar, deu entrevista ao meu colega colunista Mac Margolis, que é também o chefe do escritório da revista digital Vocativ no Brasil. “Nunca imaginei que o racismo tivesse acabado. Mas pensei que estivesse desaparecendo aos poucos”, disse o executivo à Vocativ. O objetivo de @aminhaempregada é colocar um espelho à nossa frente, nos fazer olhar para o discurso tingido de ódio e pensar. Alguns autores expostos ali continuam a tuitar fagueiros e sem arrependimento, mas, pelo menos um, cuja foto sugeria tenra idade, sumiu.
Mac Margolis notou a ironia de vivermos um momento de maior atenção institucional aos direitos de trabalhadores domésticos. A virulência expressada na mídia social seria uma reação de revoltados por ter que arrumar a própria cama ou a lavar a louça? Acho que isso apenas começa a explicar o abuso verbal.
Em julho do ano passado, Nina Davulari foi eleita Miss América 2014. Ela nasceu em Syracuse, no Norte do Estado de Nova York, filha de imigrantes de Andhra Pradesh, na Índia. Poucas horas depois da coroação em Atlantic City, a torrente de palavreado odioso no Twitter era formidável. Ela foi acusada de ser “árabe” (sim, um insulto no dialeto do rancor) e simpatizante da Al-Qaeda. Não vem ao caso, é claro, a ignorância sobre a diferença entre árabe e hindu porque o objetivo aqui é perseguir a beldade por ser escura e diferente.
Pura hipocrisia
A explosão do discurso do ódio online inspirou reação nas iniciativas para expor os preconceituosos. Websites como Public Shaming (Envergonhar em Público) se especializam em apontar o dedo para quem expressa uma opinião extrema. O problema é que, neste ecossistema, os juízes são autonomeados. O criador do Public Shaming, Matt Binder, explica que começou a retuitar gente que ataca programas de assistência social para denunciar a hipocrisia conservadora. Um retweet típico é: “Prefiro parar de comer fast-food num mundo em que os empregados das cadeias de fast-food ganham mais do que US$ 8 por hora”.
A vergonha é uma poderosa arma de dissuasão social ao longo da história. Um deputado pode ser um machista jurássico entre quatro paredes, mas cometeria suicídio eleitoral se questionasse o direito das mulheres ao voto no microfone do Congresso. Um senador que durante anos rejeitou o filho homossexual não haveria de propor, a esta altura, uma lei criminalizando o relacionamento do dito filho.
No mais recente escândalo de discurso racista vazado na mídia americana, o dono do time de basquete Los Angeles Clippers, Donald Sterling, reclama, numa conversa gravada pela namorada sem sua autorização, por ela ter trazido negros como Magic Johnson para seus jogos. Em seguida, numa entrevista para pedir desculpas e tentar evitar a perda do time numa batalha com a NBA, o boquirroto Sterling acusou Magic Johnson de ser um mau exemplo para minorias porque é soropositivo. Mas Sterling não era um racista de armário, ele já tinha sido processado pelo governo federal por discriminação, ao se recusar a alugar seus apartamentos para minorias na Califórnia. A diferença aqui é a vitrine digital planetária.
Imagino um diálogo que possa ter ocorrido entre um dos autores de comentários racistas reproduzidos no @aminhaempregada e um amigo, parente ou colega de trabalho.
“Você não tem vergonha de se referir aos outros deste modo?”
“Sim, falei sem pensar, no fundo não sou racista.”
O criador do @aminhaempregada faz bem em não querer atrair atenção para si e reconhecer a limitação do que faz. A internet permite expor o ódio. Mas a internet não é um tribunal, uma cidade ou uma cultura. É uma plataforma amoral. Ao ler os descalabros dirigidos contra um indivíduo vulnerável ou um grupo, uma reação comum é procurar a vingança do justiceiro pelo holofote da denúncia viral. O autor da ofensa passa a ser perseguido e percorre um trajeto tão contaminado de hipocrisia que pedir desculpas deixou de significar arrependimento. “Querem que eu retire o que disse? Pois bem, retiro o que disse e ainda vou apoiar uma ONG que defende a harmonia racial.”
Mas, assim como a internet não deu à luz o preconceito, a mídia social não vai ser a mãe solteira do cidadão esclarecido.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York
Fonte: Observatório da Imprensa