Rebeca Andrade, Bia Souza e a hipocrisia olímpica

Jessy Owens havia dado uma lição ao Führer. Em 1936, ao vencer a medalha de ouro na Olimpíada de Berlim, o afro-americano humilhou a tese racista de Hitler sobre a supremacia ariana. Consternado, o alemão se recusou cumprimentá-lo.

Ao retornar aos EUA, Owens descobriu que não seria apenas o líder nazista que o esnobaria. Roosevelt, em plena campanha eleitoral, achou que não seria adequado nem enviar ao atleta um telegrama pela conquista e muito menos recebê-lo na Casa Branca. Isso poderia afetar suas chances de conquistar votos no Sul segregacionista.

Owens, diria mais tarde, que não correu em Berlim apenas contra Hitler. Mas contra o mundo. Continuou, por um longo período de sua vida, tendo de entrar no ônibus pela porta de trás. Usado como arma de propaganda política, o atleta não era um cidadão pleno em seu próprio país.

Em 1968, quando dois atletas americanos decidem fazer o gesto do movimento negro – com o punho erguido – ao receber as medalhas, são expulsos dos Jogos do México. Ao retornar para casa, são condenados a um ostracismo revelador em um país que estava diante de uma encruzilhada como sociedade.

Nos últimos dias, temos visto como atores responsáveis por desmontar a defesa dos direitos humanos em nosso país correram às redes sociais para comemorar as medalhas de Rebeca Andrade e Bia Souza, sem fazer qualquer referência às violações que cometeram.

Uma hipocrisia olímpica também de tantos outros que celebram a medalha do Brasil e, ao mesmo tempo, se queixam em assinar a carteira de trabalho das milhões de irmãs, primas e companheiras de Rebeca e Bia. Ou daqueles que combatem as cotas raciais, sob a alegação de que não são nem racistas e nem tiveram pessoas escravizadas.

Enquanto o Brasil se encanta com o feito dessas meninas e uma parte da sociedade usa como uma espécie de camuflagem de uma democracia racial, uma relatora da ONU percorre nesta semana o Brasil para investigar o racismo sistêmico no país. Seu informe promete tecer um duro retrato de um país cruel, racista, xenófobo e injusto.

Um país que vê suas meninas negras serem desafiadas todos os dias de suas existências. São as que mais morrem no parto, são as que têm a menor chance de chegar aos cinco anos, são as que mais são afetadas pelo desemprego, são as que mais sofrem para ir às escolas e são as que veem uma alta na taxa de feminicídios.

Um país que, 18 anos depois da Lei Maria da Penha, foi obrigado a criar um sistema de proteção para a mulher que dá nome à lei diante das ameaças de morte que ela passou a sofrer.

Sim, temos de comemorar Rebeca e Bia. Temos de celebrar a capacidade dessas garotas em transformar suas realidades e seus destinos que pareciam predeterminados.

Mas o brilho do ouro não pode, convenientemente, cegar nossa capacidade de olhar para as cicatrizes e os crimes cometidos contra milhões de garotas que, para subir ao pódio, precisam ter direito a ter direitos. Mulheres e meninas negras no Brasil seguem no topo dos índices de violência de gênero e na base da pirâmide social. Tantas Bias e Rebecas padecem no meio do caminho. Um caminho repleto de obstáculos perpetuados pelo racismo patriarcal.

O contrário de uma nação com poucas medalhas olímpicas não é uma nação repleta de ídolos. Mas uma nação justa. E justiça não se constrói quando mulheres negras são reconhecidas e valorizadas apenas quando convém.

O resto é populismo olímpico.


Lívia Santana e Sant’Anna Vaz é uma jurista brasileira, que atua como promotora de Justiça. Ela é coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (GEDHDIS) do Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA). Destaca-se sua atuação em relação a temas como feminicídio e igualdade racial.

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