Recontando histórias em Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo

Foto: Katia Santos
Conceição Evaristo em encontro no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/ UFRJ).

Maria Carolina de Godoy*

Escritora, professora, ensaísta e pesquisadora, Conceição Evaristo despontou no cenário da Literatura Brasileira com o romance Ponciá Vicêncio (2003) cujo enredo se constitui das experiências vividas pela personagem que dá nome à obra, apresentadas em tempos sobrepostos: passado e presente se misturam nas fissuras da memória e “com habilidade ímpar, o romance entrelaça de forma descontínua vidas passadas e presentes, memória individual e coletiva” (Campos e Duarte, 2011, p. 209). Em Becos da memória (2006) a autora também elege o ponto de vista feminino para o relato, como ocorre no livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), que se funde às suas experiências de mulher negra e escritora, como ela mesma afirma em entrevista concedida a Eduardo Assis Duarte:

O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta é gerado por alguém. Alguém que é o sujeito autoral, criador/a da obra, o sujeito da criação do texto. E, nesse sentido, afirmo que quando escrevo sou eu, Conceição Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que não me desvencilho de minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá etc., condições essas que influenciam na criação de personagens, enredos ou opções de linguagem a partir de uma história, de uma experiência pessoal que é intransferível (Duarte, 2011, p. 115).

A leitura do livro permite o contato não apenas com narrativas das experiências femininas, mas também com as peculiaridades do ouvir e do narrar. Uma voz presente em todas as narrativas alinhava os relatos e constrói a imagem do tecer enredos como quem costura experiências ao posicionar-se como ouvinte e tornar-se responsável por reunir os treze contos, exercendo a liberdade ficcional da contadora dos relatos coletados.

Desde sua infância, a autora diz ouvir histórias e a esse fato atribui seu gosto pela narrativa e conta sobre seu contato com a literatura, como nesta entrevista de Eduardo de Assis Duarte:

Como foram os seus primeiros contatos com a literatura?
Conceição Evaristo – Primeiro, foi com a literatura oral vivida no seio da família, nasci cercada de palavras. Cresci escutando histórias narradas por minha mãe, tias e tios. Histórias da escravidão, de princesas, de assombrações e outras. Os causos sobravam pelos cantos de minha casa (Duarte, 2011, p. 103-104).

Ela acrescenta, em outro momento da entrevista, comentários sobre sua relação com o conto e a poesia:

Sim, navego pelas águas do conto e da poesia e, apesar de ter um público leitor que aprecia meus versos e de ser mais conhecida como poetisa, gosto muito da prosa. Prefiro os meus contos aos meus poemas. Gosto de contar e de ouvir casos (Duarte, 2011, p. 108).

Desde o início dos relatos, é possível a identificação dessa relação entre as mulheres negras: a primeira, no presente da narração é caracterizada como ouvinte; a segunda, protagonista da história narrada, assume a narração de sua experiência em momentos especiais do conto. Na página de abertura do livro, encontra-se a exposição do processo de elaboração artística da autora, que fornece pistas quanto ao modo de organização das narrativas:

Gosto de ouvir, mas não sei se sou a hábil conselheira. Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E, no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta. […] Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência (Evaristo, 2011, p. 9).

Ao relatar dores e alegrias simultâneas, as protagonistas rememoram descobertas da feminilidade e da maternidade, atos violentos contra seus corpos, reencontro com suas origens na infância ou na arte, ações permeadas por conflitos gerados em condições adversas da pobreza, do preconceito e do ser mulher e negra. Ao lado desses temas, a tentativa de preservação da memória é perceptível em uma narradora preocupada em ouvir e colher experiências a fim de registrá-las no texto escrito. Os treze contos do livro Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), em sua breve extensão, possibilita o entrecruzamento de vozes e resgata o narrador-ouvinte que, além de ceder a voz à experiência de personagens, esclarece de que maneira teceu os discursos das narradoras, como mostra o conto “Aramides Florença”: “Quando cheguei à casa de Aramides Florença, a minha igual estava assentada em uma pequena cadeira de balanço e trazia, no colo, um bebê que tinha a aparência de quase um ano” (Evaristo, 2011, p. 11).

Mudar o rumo de uma história de vida que parecia definida configura-se como eixo temático comum entre os relatos do livro em cujo título se encontra a pista para essa interpretação: “insubmissas lágrimas”. As mulheres dos contos de Conceição Evaristo negam o modelo do século XIX que se formulou a partir do século XVIII:

O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formulou a partir do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a mulher, quando maternal e delicada, como força do bem, mas, quando “usurpadora” de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como potência do mal. Esse discurso que naturalizou o feminino, colocou-o além ou aquém da cultura. Por esse mesmo caminho, a criação foi definida como prerrogativa dos homens, cabendo às mulheres apenas a reprodução da espécie e sua nutrição (Telles, 2004, p. 403, grifos da autora).

Em seus contos, Conceição Evaristo não apenas coloca em evidência temas caros à condição feminina, como também preserva em sua forma resquícios da tradição africana, isto é, recria histórias como conhecedora de sua tradição de mulher negra.

Ouvir e contar são posturas narrativas que retomam os griots, guardiões das histórias orais de um povo que as transmitem ao longo do tempo. Para que haja essa troca quase ritualística entre a ouvinte e a narradora ocorre, inicialmente, a identificação e a empatia entre mulheres negras, como mostra o conto “Isaltina Campo Belo”:

Campo Belo, como gostava de ser chamada, dentre outros detalhes, tinha uma idade indefinida, a meu ver. Se os cabelos curtos, à moda black-power, estavam profundamente marcados por chumaços brancos, denunciando que a sua juventude já tinha ficado há um bom tempo para trás, seu rosto negro, sem qualquer vestígio de rugas, brincava de ser o de uma mulher que no máximo teria quarenta anos (Evaristo, 2011, p. 49).

Ou na narrativa de Mary Benedita:

Não imaginei, entretanto, que ela [Mary Benedita], mal sabendo que uma ouvinte de histórias de suas semelhantes havia chegado à cidade, tivesse vindo tão rapidamente à minha procura, para atender o meu afã de escuta. Tímida, porém determinada, foi logo dizendo que precisava me contar algo de sua vida. Viera para me oferecer o seu corpo/história (Evaristo, 2011, p. 59).

No conto contemporâneo, o simulacro do contar histórias nos moldes da tradição oral é uma de suas principais características:

Não é o narrador oral quem persiste no conto, mas a sombra daquele que o escuta. […] A presença de quem escuta o relato é uma espécie de estranho arcaísmo, mas o conto como forma sobrevive porque levou em consideração essa figura que vem do passado. […] Há um resquício da tradição oral nesse jogo com um interlocutor implícito; a situação de enunciação persiste cifrada e é o final que revela sua existência (Piglia, 2004, p. 101).

Além da recuperação da tradição oral, há presença dos mitos afro como a identificação entre a personagem Adelha Santana Limoeiro e Nanã, a sábia senhora dos primórdios:

Adelha Santana Limoeiro, negra, poderia sim, relembrar a santa branca, a Santana, pois a avó de Jesus aparece sincretizada com Nanã, mito nagô. Misturando a fé, fiz o amálgama possível. Pisei nos dois terrenos, já que Nanã é também velha. Adelha Santana Limoeiro é Nanã, aquela que conhece o limo, a lama, o lodo onde estão os mortos. Santana, Nanã, Limo (eiro). E depois desse reconhecimento, já é possível recontar a história que Santana me contou (Evaristo, 2011, p. 33).

O marido, que procurava constantemente outras mulheres, sentiu-se mal em uma dessas aventuras e precisou ser socorrido pela esposa. Adelha, em virtude do agravamento da saúde do esposo, resolve ficar morando na mesma casa onde ele passara mal até sua morte. Ela faz o inusitado ao se mudar para o lugar em que ele foi encontrado, atribuindo tal atitude à sabedoria advinda da velhice, como mostra o fragmento abaixo:

Eu quero viver a grandeza da minha velhice e estou conseguindo sem mentiras, sem falsos remédios. Não quero me iludir com a cruel promessa da devolução de um tempo que já passou. E assim fiquei com ele algumas semanas, na casa, do outro lado do córrego. Ele, as jovens mulheres e eu. Nos primeiros dias, envergonhado, ele não quis voltar para casa. Depois, o médico da cidade, que atendia ao meu chamado toda vez que ele desfalecia, achou melhor ficarmos por ali mesmo. […] Seu último gesto foi tentar levar as mãos no entremeio de suas pernas. Assim a história dele terminou – não a minha –, enfatizou Santana, no final desse relato (Evaristo, 2011, p. 37).

No conto intitulado “Aramides Florença” há intervenções da narradora-ouvinte que expõe suas impressões de observadora dos acontecimentos que narra, identificando-se com a mulher descrita:

Eu percebi intrigada que, tanto pelos sons, como pela expressão de rosto e movimentação de corpo do menininho, o melodioso balbucio infantil se assemelhava a uma alegre canção. Teria a criança, tão novinha – pensei mais tarde, quando ouvi a história de Aramides Florença – rejubilado também com a partida do pai? Só a mãe, só a mulher sozinha, lhe bastava?” (Evaristo, 2011, p. 12).

A protagonista conta ter planejado primeiro ter um filho e, depois, a escolha do pai, o que mostra o exercício da liberdade feminina no final do século XX: “Ter um filho havia sido uma escolha que ela fizera desde mocinha, mas que vinha adiando sempre. Vivia à espera de um encontro, em que o homem certo lhe chegaria, para ser o seu companheiro e pai de seu filho” (Evaristo, 2011, p. 13). Procurou realizar seus sonhos em condições econômicas satisfatórias.

A narradora, apesar do distanciamento temporal dos fatos, torna-se empática à experiência da gestação da personagem e procura transferir ao discurso a emoção da espera do primeiro filho: “E, durante os nove meses, vivenciaram as excitações dos parentes e amigos em seus prognósticos. […] Enquanto isso, a criança, exímia nadadora, bulia incessantemente na bolha d´água materna” (Evaristo, 2011, p. 13-14). O ato de violência sexual do marido contra Aramides, entretanto, é narrado pela própria protagonista:

Estava eu amamentando o meu filho – me disse Aramides, enfatizando o sentido da frase, ao pronunciar pausadamente cada palavra – quando o pai de Emildes chegou. […] Numa sucessão de gestos violentos, ele me jogou sobre nossa cama, rasgando minhas roupas e tocando violentamente com a boca um dos meus seios que já estava descoberto, no ato de amamentação de meu filho. E, dessa forma, o pai de Emildes me violentou. […]  E, inexplicavelmente, esse era o homem. Aquele que eu havia escolhido para ser meu e com quem eu havia compartilhado sonhos, desejos, segredos, prazeres… (Evaristo, 2011, p. 17-18).

Nesse momento, os tempos da narração e da história se entrecruzam sutilmente e a cena trazida do passado, pela voz daquela que viveu o acontecimento nuclear da narrativa, confere ao relato não apenas maior impressão de veracidade, como também é o modo pelo qual a narradora assinala a importância de ceder o espaço àquela voz que precisa realmente ser ouvida.

Outra narrativa que põe em evidência a violência masculina é a de Shirley Paixão: “Foi assim – me contou Shirley Paixão – quando vi caído o corpo ensanguentado daquele que tinha sido meu homem, nenhuma compaixão tive” (Evaristo, 2011, p. 25). Predomina a narração comovente da protagonista a partir da qual se conhece sua história e de suas cinco filhas: três do marido, concebidas em outra relação, e duas de sua relação com outro homem. Seni sofre abusos do pai e conta com o amor e a proteção de Shirley que, ao descobrir a violência contra a menina, agride o companheiro deixando-o quase morto: “Naquela noite, o animal estava tão furioso – afirma Shirley chorando – que Seni, para a sua salvação, fez do medo, do pavor, coragem. E se irrompeu em prantos e gritos” (Evaristo, 2011, p. 29).

As personagens passam a ser (re)criadoras de sua trajetória, ao negarem imposições características dessa construção histórica patriarcal em que seu espaço foi definido pelo outro. Nos contos, as protagonistas deslocam-se, transitam, mudam de lugar para se encontrarem com a realização de seus anseios. A negação de uma história e a afirmação de outra são marcas dessas narrativas e, simbolicamente, ao ceder voz às personagens, a narradora permite que elas sejam, pelo breve espaço de um conto, participantes da criação artística:

Tanto na vida quanto na arte, a mulher no século passado aprendia a ser tola, a se adequar a um retrato do qual não era a autora. As representações literárias não são neutras, são encarnações “textuais” da cultura que as gera. […] Para poder tornar-se criadora, a mulher teria de matar o anjo do lar, a doce criatura que segura o espelho de aumento, e teria de enfrentar a sombra, o outro lado do anjo, o monstro da rebeldia ou da desobediência. O processo de matar o anjo ou o monstro refere-se à percepção das prescrições culturais e das imagens literárias que de tão ubíquas acabam também aparecendo no texto das escritoras (Telles, 2004, p. 408).

A relevância adquirida pela posição da ouvinte nas narrativas desses contos demonstra respeito à voz e à experiência alheias, aliadas à identificação com as dores vividas no corpo de mulher negra. Ao mesmo tempo, representa peculiaridades da construção narrativa de alguém que conhece suas tradições e traz a singularidade do encontro de duas histórias: a da ouvinte griot, desejosa de conhecer o relato, e da vivência da protagonista, ansiosa por compartilhar sua trajetória. Ambas condensadas na escrevivência de Conceição Evaristo.

A presença da mesma narradora que se dispõe a ouvir os relatos de mulheres e posiciona-se no papel de condutora, como um fio de Ariadne, possibilita o entrecruzamento de todas as vozes nos labirintos dessas lembranças revividas pelo narrar. As impressões da narradora e a perspectiva de análise do passado realizada pela protagonista ao assumir o relato e a história nuclear desencadeadora da curiosidade da ouvinte estão presentes, por exemplo, no conto “Maria do Rosário Imaculada dos Santos”:

O sorriso dela foi tão encantador e respondeu ao meu boa tarde, de uma maneira tão efusiva, que, para quem busca histórias, aquela atitude afiançava o desejo dela de conversar comigo. E quando, embora brincando, revelou o seu descontentamento com o próprio nome, me lembrei da mulher que havia criado um nome para si própria. Tive vontade de contar a história de Natalina Soledad [outro conto do livro], mas, naquele momento, o meu prazer era o da escuta. Insistindo sempre que de imaculada nada tinha, Maria do Rosário, ainda fazendo troça, pediu licença à outra, a santa, e começou a narração de um pouco de sua vida (Evaristo, 2011, p. 39).

A estreita relação entre o saber ouvir e a memorização de experiências do outro, tão bem caracterizada por Benjamin como marca dos narradores orais, é resgatada nesses contos em que a narradora cede constantemente a palavra às personagens. Desse modo, adquire relevância o contar, a voz de quem viveu a experiência:

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro (Benjamin, 1994, p. 204).

Em sua escrevivência, literatura e vida de mulheres negras se fundem numa voz que conta e canta, poeticamente, as experiências únicas e intransferíveis, registradas no espaço da escrita, da arte de outras vidas:

Asseguro que a minha condição étnica e de gênero, ainda acrescida de outras marcas identitárias, me permite uma experiência diferenciada do homem branco, da mulher branca e mesmo do homem negro. A minha experiência pessoal influencia a minha escrita conduzindo o ponto de vista, a perspectiva, o olhar que habita meu texto (Conceição Evaristo in Duarte, 2011, p. 115).


* Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007) e professora adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL) no Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas.

Referências:

BENJAMIN, W.  O narrador. In:_____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.

CAMPOS, M. C. C. C. e DUARTE, E. A. Conceição Evaristo. In: DUARTE, E. A. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 207-226.

CORTÁZAR, J. Alguns aspectos do conto. In:____. Valise de cronópio. Tradução Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 147-163.

DUARTE, E. A. e FONSECA, M. N. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. p. 103-116.

EVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.

PIGLIA, R. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

TELLES, N. Escritoras, escritas, escrituras. In: PRIORE, M. D. (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 401-442.

Fonte: Revista Z Cultural

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