(Re)exisência dos griôs nos quilombos em meio à pandemia

A cada dia é noticiado que milhares de vidas foram ceifadas pela Covid-19 e outras milhares foram internadas em estado grave. O vírus começou pelas grandes metrópoles, e seus principais alvos são os idosos e portadores de doenças crônicas —grupos que tendem a ser mais suscetíveis aos sintomas graves da Covid-19 e, consequentemente, ao óbito.

Nós, enquanto juventude quilombola, temos nos preocupado e tido todo o cuidado com nossos(as) mais velhos(as), eles que são nossas bases e carregam nossa ancestralidade. Quando perdemos nossos mais velhos de causas naturais, é uma dilaceração para nossas comunidades, é um pedacinho nosso indo embora de forma física, é um corpo histórico, um livro vivo que se vai.

Com uma pandemia na qual eles se encontram mais vulneráveis ainda, não podemos ter mais nossas conversas e aprendizados, uma prática comum para nós —nos reunirmos com os nossos mais velhos com frequência—, e agora nos encontramos em uma situação em que nosso cuidado é estar longe, em que não podemos sentar pertinho deles nos nossos terreiros do quilombo. A Covid-19 se interiorizou, e estamos apreensivos, temendo por cada griô. Não podemos estar perto, então rogamos a nossos ancestrais que os guardem e os sustentem até que toda essa situação acabe e possamos voltar a ouvi-los e abraçá-los.

A Covid-19 já levou algumas de nossas lideranças, um pedaço de nossa história, e seguimos apreensivos com a pouca assistência dada aos nossos quilombos. Os próximos meses tendem a ser mais complicados dentro do território. Seja os que estão urbanos ou nas comunidades rurais, estamos desamparados. Deve-se ter uma estratégia de assistência específica para nosso povo. Muitas comunidades não possuem água potável e acesso a uma UBS ou a um hospital.

Esse é um contexto geral das comunidades a nível nacional. A situação muda conforme a região —quanto mais interiorizados, menos assistência temos. De onde falo e vivencio, o Norte, especificamente do Tocantins, até o momento os casos têm aumentado nas comunidades. Os óbitos já começaram, e como previsto os nossos mais velhos são as vítimas.

anto estadual como nacional, caso da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), tudo feito à distância. Tanto as ajudas quanto as assistências de relatoria sobre os casos nas comunidades, e todas as informações que são noticiadas sobre nosso povo, são feitas por nós mesmos.

Além da Covid-19, temos que lidar com a invasão de grileiros e até mesmo do Estado dentro dos nossos territórios, causando danos e expulsando muito dos nossos de nossas terras de direito. Como a maioria dos territórios aguarda a certificação —e temos permanecido no território como forma de resistência até a certificação final—, grileiros e Estado têm aproveitado esse momento de fragilidade e de atenções na pandemia para pressionar nosso povo e nos amedrontar. Estamos sofrendo duplamente.

Em nossos quilombos, valorizamos nossa ancestralidade. Nossos griôs são mais do que nossos avós, pais, referências: eles são nossa base, são aqueles que lutaram para nossa existência, são seres sagrados a quem recorremos, que nos inspiram a lutar e a seguir.

Mesmo diante do medo e da preocupação com a contaminação, nossos griôs têm se mantido firmes, lutando de sua forma, não abandonam o roçado e nem suas práticas culturais. É o que nos fortalece em meio ao caos e ao medo. Os cuidados redobraram, estamos nos reinventando, mas desistir e parar não é algo que nosso povo faz. Mesmo quando somos tombados, levantamos outros.

A agricultura familiar continua com o grupo reduzido, porém continua, e essa é a forma de resistência dos nossos mais velhos. Proteger o território, produzir, colher e partilhar. A produção não para, é nosso sustento, é o cuidado com a terra. Temos boa parte da nossa juventude nos campos, ajudando e produzindo, mas o protagonismo é deles, os que nos ensinam, eles que mais tarde seremos nós.

Nós temos a prática da agroecologia, da coletividade na produção: o que planto eu divido, o alimento que eu produzir meu vizinho irá comer. As pessoas devem se perguntar: por que mesmo em meio à pandemia continuamos a plantar e ir aos campos? A resposta é simples. Plantamos desde sempre o que consumimos, em sua maioria, e, além de produzir nosso alimento, temos a ligação com a terra —principalmente os mais velhos, que há tanto tempo cuidam dela.

A juventude aprende de perto. Agora, nem todos podem estar perto, mas fazemos o possível para estarmos em contato com nossos mais velhos e aprender. Como a internet não está disponível em todo quilombo, nem todos podem contatar seus griôs, mas temos a certeza que os ancestrais os guardam.

Infelizmente, o vírus é real, e ele ameaça nossa ancestralidade. Ele pode levar nossos anciões de forma precoce, isso assusta e até gera revolta.

Nossa ancestralidade (re)existe. Mesmo sendo a mais vulnerável, ainda consegue nos dar forças, ainda tem nos sustentado. Hoje nossa juventude roga mais do que nunca a sustentação dos nossos anciões, a proteção e a força para eles. Somos cientes da gravidade do vírus, e por isso tememos uma grande perda dos nosso mais velhos. Seguimos com fé em Deus, nos Orixás, e em nossos seres sagrados, os griôs.


Maria Aparecida Ribeiro de Sousa é licenciada em pedagogia pela UFT. É da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins e da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Vive no Quilombo Povoado do Prata, São Félix (Jalapão, TO).

Débora Gomes Lima é licenciada em química pela UFT, quilombola, preta e lésbica. Integra o MEIQ (Movimento Estudantil Indígena e Quilombola). Vive em Aragominas (TO) e é da comunidade quilombola Pé do Morro.

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