Reflexões sobre um clássico do racismo brasileiro e suas implicações sociais e políticas

O quadro abaixo reproduzido, de 1895, é “A Redenção de Cam”, do espanhol Modesto Brocos. É um “clássico” do racismo brasileiro, produzido em meio à discussão acerca do “depuramento” das raças, mais precisamente o branqueamento das descendências, havendo então a crença que o sangue do ser humano branco, por mais forte, levaria, necessariamente, ao clareamento da pele de sua descendência.

Por Marcos Nunes, no DCM

Imagem/Obra: ‘ A redenção de Cam’ de Modesto Brocos

O que se vê é evidente; mesmo assim explicito: a avó negra, mãe da mulata, casada com o caboclo, levanta as mães para os céus em agradecimento pelo neto branco, no colo da mãe, resultado desse “depuramento de sangue”, ou mais “sofisticadamente”, da “evolução das espécies”.

Toda uma narrativa racial permeou as culturas universais séculos a fio; não há ser humano que são tenha, bem ou mal guardado em si, um grau de racismo. O regime é o “todos contra todos”, sendo cada um expressão de uma condição “racial” a ser comemorada ou superada.

Nada na história humana, e muito menos qualquer informação científica com um mínimo de credibilidade, sustenta o discurso racial. Para os biólogos, a raça humana não apenas é una, como na verdade pouco difere de seus familiares bípedes antropóides, entre eles o homem. Um chega a afirmar: “Nós não descendemos dos macacos: nós somos macacos”.

A deformação ideológica, contudo, vai longe. Por exploração econômica, se sustenta um discurso, e ele fundamenta todas as operações de lucro.

Hoje, no Brasil, pois é o Brasil que nos interessa, revive esse mal que, na verdade, jamais morreu, e só é negado por aqueles que, por racistas, consideram mais adequado escrever que “não somos racistas”, e assim perpetuar um regime de servidão que privilegia a humilhação do negro, do mestiço, da grande massa que compõe o brasileiro pobre, a maioria carente de educação por projeto levado a termo pelas classes dominantes, a maioria sem direito a serviços de saúde, proteção ao trabalho, limitação do ódio racial por aplicação de lei já existente mas, como sempre, não aplicável quando o delito é praticado pelos julgadores e seus apaniguados de sempre.

Lamentavelmente, quando apontamos a incorreção política de certas “manifestações populares” que servem à manutenção, no imaginário coletivo, dos estatutos do racialismo, logo aparecem aqueles que, interessados na manutenção do status quo, logo vem em defesa da “incorreção política”, essa falta de educação que aflige as pessoas de todas as classes, e as fazem ignorar (ou, cientes, fazer de conta que ignoram) que, tal incorreção sempre se aplica à manutenção de todo tipo de preconceitos, destacadamente o machismo, a homofobia, a eugenia. Sobra para todo mundo: o cabeludo e o careca, o gordo e o magro, o bonito e o feio. 

Tudo que é conceito se relega ao esquecimento: vale a superfície das coisas que oculta um profundo menosprezo pelo Outro, esse Outro que deve capitular às normas de exploração sistematizadas pelo modo de produção social.

Gostaria de ter chegado ao século XXI, ou, ao menos, nesse momento de minha vida, quando não há mais de 1/3 do que já vive para seguir experimentando esse fenômeno que é, em si, a vida, satisfeito com o grau civilizatório que teríamos alcançado, podendo ver neste quadro um tempo passado, ultrapassado, posto como referência de um estado de barbárie pré-científica, a serviço da opressão humana.

Mas seguimos assim, humanos-desumanos, um sendo o outro, outro sendo o um, sem redenção à vista, sem superação de níveis de linguagem que deveriam estar, há muito, sepultados.

Cam, ou Caim, para quem não sabe, seria o filho amaldiçoado por Noé, no Antigo Testamento, condenado a servir a descendência sã do patriarca, por vingança causada por reles zombaria (os critérios dos patriarcas sempre se fundaram em arbitrariedades motivadas por orgulho e egoísmo). A descendência de Caim foi condenada à servidão. 

Discurso que “naturaliza” toda e qualquer escravidão. Como a dos brasileiros, condenados, pelo que se vê, a servir seus mestres europeus, norte-americanos, chineses… Nada há de natural nisso.

 

+ sobre o tema

PM pede a atriz Letícia Sabatella ‘termo de responsabilidade’ por defender jovens

Ganhou repercussão nas redes sociais um episódio envolvendo a...

IDADE PENAL: A sociedade e as lógicas da criminalidade – por Suzana Varjão*

“Criava-se uma geração de predadores que iria aterrorizar São...

A cultura do estupro avança como uma verdadeira pandemia no Brasil

Na sexta passada, quem estava em Sergipe assistindo à...

para lembrar

Funcionária que teve pulsos amarrados será indenizada

Com base nesse entendimento, a 7ª Câmara do Tribunal...

‘Silenciosa dignidade’

A tensão racial explodiu em confrontos violentos na presidência...

Para Ives Gandra: sobre direitos e privilégios

São Paulo, 20 de novembro de 2017. Prezado Ives Gandra, Márcia...
spot_imgspot_img

Geledés repudia caso de racismo contra Vera Lúcia, ministra do TSE  

A ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana Araújo, sofreu um episódio de racismo no dia 16 de maio. A magistrada foi...

Ministra do TSE relata humilhação e racismo em evento do governo: ‘Vou ajuizar tudo, indignidade’

A ministra do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Vera Lúcia Santana diz se sentir humilhada e promete entrar na Justiça após denunciar episódio de racismo em evento do governo...

Caso João Pedro: família cobra júri popular para policiais acusados

Familiares e defensores dos direitos humanos protestaram nesta terça-feira (20) com faixas em frente a sede do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), no centro...
-+=
Geledés Instituto da Mulher Negra
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.