Reflexões sobre um planejamento urbano inclusivo e a saúde pública – um diálogo possível?

Pensar o planejamento urbano passa pelo desafio de instituir cidades democráticas, ‘inclusivas e saudáveis. Neste sentido, o crescimento urbano precisa acompanhar a dinâmica populacional e ao mesmo tempo atender às suas demandas. Não atendendo esta premissa o direito à cidade é restrito.

No Brasil, o modelo de desenvolvimento ocorre de forma excludente e discriminatória, pautado na lógica da classe, raça e cisheteto- patriarcal. Essa lógica dominante vem instituindo uma dinastia política de reproduz de forma secular um modelo opressor que inviabiliza a mobilidade social em uma perspectiva mais progressista cujos reflexos repercutem na condição de privilégio e de vulnerabilidade dentre os sujeitos que compõe essa sociedade.

A forma de gestão instituída nega a garantia de direitos da sua população em vários níveis, desde o acesso a água, moradia, alimentação, áreas de lazer, e educação, por exemplo. Essa desassistência reflete em diferentes formas de exposição ao risco, de adoecimento e morte. Evidenciando, assim, que não estamos todos sobre as mesmas condições de existência.

O território, enquanto campo de disputa de poder, reflete a lógica neoliberal especulativa, servindo de palco da manifestação prática de privilégios e vulnerabilidades. As negligências, a partir daí instituídas, vilipendia a população brasileira configurando um cenário que subsidia a existência da necropolítica instituída neste país. A eleição da política de morte, enquanto uma decisão da forma de gestão, atribui valor diferente aos corpos existentes nos diferentes territórios (MBEMBE, 2018)

Assim, para pensar planejamento urbano e promoção a saúde algumas questões precisam ser consideradas, como: para quem está sendo realizado o planejamento? E por quem está sendo realizado? A quem serve a lógica do planejamento urbano instituído? Estas questões suscitam uma reflexão para a compreensão da necessidade de nomear os atores, como também localizá-los dentro de uma perspectiva política, como propõe Grada Kilomba (2012),

No que diz respeito ao reconhecimento da população brasileira, é preciso pensar na diversidade que a compõe para garantir equidade no planejamento e nas ações. Nesse sentido, é importante destacar que até 2015, no Brasil, tínhamos cerca de três milhões de pessoas sem certidão de nascimento, ou seja, sem identidade, sem CPF, sem direitos, sem defesa e invisíveis ao Estado, ou seja, um “não ser social” (LADEM,2020).

Quando partimos para a composição étino- racial temos no país, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2019), a presença de 1,1 % de amarelos ou indígenas, 42,7% de brancos e 56,2 de negros (9,4% pretos e 46,8% pardos). Assim, temos que a população negra é a maioria na sociedade brasileira.

Importante também destacar que 51,8% da população é formada por mulheres, as quais recebem menos que os homens e desempenham uma tripla jornada de trabalho. Quando se avalia a pirâmide socioeconômica é possível observar a disposição de cada grupo populacional. Os homens brancos e as mulheres brancas, herdeiros da exploração colonial, nas primeiras camadas, seguidos pelos homens negros seguidos das mulheres negras, compondo a base dessa pirâmide.

Nesse momento, nos deparamos com um cruzamento da malha opressora que revela um panorama de vulnerabilidade sistêmica facilmente perceptível ao analisarmos que as mulheres negras ganham menos que os homens negros, trabalham majoritariamente na informalidade e que em 63% dos lares chefiados por elas com filhos de até 14 anos estão abaixo da linha da pobreza, conforme publicação da Síntese de Indicadores Sociais (2018).

Não à toa as iniquidades em saúde recaem sobre esta população de forma perversa. A pandemia está apenas reafirmando o fosso das desigualdades e o fracasso das instituições públicas em prover as demandas de sua população, evidenciando que estão respondendo ao modelo de segregação estruturante defendido pela elite desse país.

Entra aqui em pauta a interseccionalidade historicamente debatida por Lélia González, Luíza Bairros, e assim nomeada por Kimberlé Crenshaw (2014), e muito bem analisada por Carla Akotirene (2018) em seu livro O que é interseccionalidade? Esta forma analítica de compreensão dos fenômenos sociais se apresenta como uma metodologia teórica e prática que nos leva a compreender colisão estabelecida na encruzilhada das opressões, a qual incide de forma perversa sobre os mais vulneráveis e protege os privilegiados.

A interseccionalidade é o caminho para se pensar o direito às cidades, uma vez que favorece a elaboração de um planejamento analítico e propositivo, sendo um pressuposto básico para se conhecer a população. O planejamento que não caminhar nessa direção deixa a margem metade da sua população ao realizar políticas públicas universalizantes e ao mesmo tempo excludentes.

Assim, refletindo sobre a elaboração de um planejamento urbano inclusivo, é preciso:

– Ouvir as mulheres, sobretudo, as mulheres negras. Uma vez que ocupam a base da pirâmide socioeconômica, lugar que garante um olhar diferenciado sobre as diversas questões sociais, econômicas, ambientais e raciais, valorizando esse lugar da experiência. É a partir dele que as melhores proposições virão. São estas mulheres que vivem neste lugar desenvolvendo diariamente estratégias insubmissas de sobrevivência, uma sobrevivência dada como improvável, que resistiu e resiste à travessia atlântica. Os movimentos das mulheres negras mexem abalam as estruturas sociais e a possibilidade deste deslocamento passa a distribuir as oportunidades e viabiliza o exercício de direitos para todos;

– Considerar o papel da diversidade é outro aspecto importante. No momento atual é preciso considerar que os países governados por mulheres tem obtido as melhores respostas no controle da pandemia, como Alemanha, Taiwan e os países nórdicos, evidenciando eficiência de outros modos de gestão. Esse resultado enfatiza a necessidade de instituir a diversidade como uma forma de viabilizar a expressão das potências subjugadas pelas diversas formas de opressão. É preciso mudar o tom da narrativa, neste sentido é preciso destacar a necessidade de representatividade. Não uma representatividade alegórica, mas que dialogue com uma agenda política progressista, decolonial, antifacista e antirracista. As estratégias de intervenção precisam ser pensadas justamente em uma lógica contra – hegemônica, revolucionária e porque não dizer insubmissa, sobretudo ao modelo neoliberal, racista, sexista e classista presente em nossa sociedade.

Neste sentido, é preciso falar da disputa política de poder e garantir a presença das mulheres na política. Essa é uma via de acesso para enfrentar as desigualdades e o apagamento das vias de transformação, Marielle Franco não foi assassinada à toa, ela estava pautando um planejamento social inclusivo e contra- hegemônico. Ouvir quem vivencia as desigualdades de forma singular é a saída para conseguirmos um projeto inclusivo, equânime e saudável a todos. Neste sentido, é importante destacar, por exemplo, o Movimento Agora ela pela Pré- candidatura de Vilma Reis à prefeitura de Salvador, Benedita da Silva candidata em São Paulo, candidatura de Aurea Carolina em Belo Horizonte, a vitória de Erika Hilton em São Paulo, Vivi Reis no Pará e do coletivo Pretas por Salvador, representado pela vereadora Laina Crisóstomo como estratégias inspiradoras de mudança;

– Garantir a estrutura das escolas públicas (iluminação, ventilação, áreas de esporte) – dialogando diretamente com a juventude negra. A escola precisa ser vista como um espaço de formação cidadã e não um espaço adoecedor para professores e alunos. O projeto Saúde na Escola do Ministério da Saúde exige uma interlocução entre as duas grandes áreas prioritárias, no entanto, esta realidade está bem distante de ser alcançada;

– Viabilizar a construção de creches públicas adequadas e que efetivamente atendam a população local e especificidade das crianças. As famílias, historicamente, disputam vagas nas creches por meio de sorteio. Por se tratar de um país sustentado pela égide do patriarcado, o limite de acesso faz com que os cuidados das crianças sejam restritos às mulheres, restringindo a possibilidade de ingresso no mercado de trabalho, reforçando a dependência financeira de seus companheiros e familiares. Fato que repercute em menor autonomia destas mulheres, podendo ser mote de violência doméstica, pela subjugação material;

– Considerar a incidência de doenças crônicas no território é outro aspecto importante. A obesidade no Brasil cresceu em treze anos (2006 a 2018) em 67% e a hipertensão segundo o VIGITEL subiu de 22,6% para 24,5% (2006 a 2019) (BRASIL,2019). É importante frisar que estas comorbidades agravam não só o quadro da COVID-19. Práticas de atividade física são recomendadas como ações de promoção à saúde, mas como garantir isso nas áreas íngremes e periféricas das grandes capitais? Como estruturar áreas públicas que viabilizem tais práticas? São questões para compor a pauta;

– O acesso à moradia é uma demanda urgente. As autoridades sanitárias têm destacado o Isolamento social e a lavagem das mãos como medidas de cuidado, no entanto, é importante destacar que 11,5 milhões de brasileiros moram em casas superlotadas, que abrigam mais de três pessoas por dormitório (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2018);

– Assumir a responsabilidade com o acesso ao saneamento básico. Estamos falando de lavar as mãos com meio de proteção à COVID-19, mas para isso é preciso rever o acesso da população a água. Historicamente essa medida de proteção é secular e até hoje não foi devidamente assegurada a todos. Quanto ao déficit de acesso e ao investimento em água as regiões Norte e Nordeste apresentam os piores indicadores. No que diz respeito ao acesso, elas têm déficit de 30 % e 37,1%, quanto ao investimento de 4,1% e 20,5% respectivamente. Estes indicadores se apresentam de forma inversamente proporcional quando comparamos com as regiões Sul e Sudeste (SNIS,2020). Ambientes insalubres favorecem não só a transmissão do coronavirus, mas favorece a disseminação uma série de doenças respiratórias, sobretudo nas crianças e nos idosos.

– Fortalecer o SUS é condição imprescindível para a saúde nos territórios. A Atenção primária a saúde trabalha na perspectiva de territorialização, e os estudos revelam que quando bem estruturada resolve até 80% dos problemas de saúde da população. A análise de situação de saúde da população e o planejamento local de saúde é realizada com base na dinâmica populacional, física e relacional. Considerar o conhecimento e o papel dos Agentes comunitários de saúde é fundamental para pensar ações de intervenção territorial e de promoção a saúde. Por isso pensar em planejamento urbano é também o defender SUS. Sendo assim, destaca- se a necessidade de:

– Pensar a estrutura das unidades de saúde, e quem essa população vai atender;

– Alocar os profissionais médicos de acordo com a demanda e análise de situação de saúde populacional;

– Ampliar a capacidade de gerar dados desagregados. Estratégia que viabiliza caracterizar a população e intervir de forma equânime;

– Integrar efetivamente a população quilombola ao planeamento das ações de saúde, considerando que esta tem uma forma particular de lidar com o território e com a própria saúde.

Para finalizar seguem duas frentes sem as quais as demais terão dificuldades de serem realizadas:

– Capacitação a gestão pública e fortalecer a justiça ambiental também constituem pautas a serem defendidas, uma vez que não adianta dispor do Estatuto das Cidades e Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano se eles não consideram a diversidade que compõe os territórios. É responsabilidade do Estado garantir os meios para a inclusão social a partir das singularidades de cada território, caso contrário continuaremos a assistir a adoção de práticas universalizantes ineficazes que não protegem e não oferecem respostas as demandas da população.

– É importante considerar que para realizar as ações que garantam acesso a uma cidade de direitos é imprescindível instituir o diálogo com os movimentos sociais, como movimento de mulheres, Rede de mulheres de Terreiro, movimentos da juventude e todos os coletivos que vem se fortalecendo. As comunidades sabem o que precisam, e estão se organizando por sua própria conta, encontrando as suas estratégias de sobrevivência e resistência, conforme afirma lema nascido nas lutas dos movimentos sociais:“ nada sobre nós, sem nós”.

A crise sanitária instaurada pela COVID-19 já estava há muito tempo anunciada, considerando que a dificuldade de sua contenção ocorreu em função de um processo de vulnerabilidade ao qual a população brasileira está submetida. Se as medidas de enfrentamento às desigualdades não forem efetivamente adotadas, bem como a proteção e defesa do SUS frente às políticas de austeridade continuaremos com o prenúncio eminente de sucumbir diante das pandemias. As iniquidades em saúde são produzidas por uma negligência sistemática as quais incidem sobre os corpos e os territórios de forma distinta. Neste sentido, a adoção da equidade como um eixo norteador na elaboração dos planejamentos urbanos e execução das políticas públicas é a real possibilidade de dirimir as desigualdades e conferir efetivamente promoção e proteção à saúde.

REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, C.O que é interseccionalidade? Belo Horizonte:Letramento, 144p, 2018.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde, 2019. Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2019.

CRENSHAW, K.W. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/. Acessado em 07 de julho de 2020.

SIS. Síntese de Indicadores Sociais, 2018. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25882-extrema-pobreza-atinge-13-5-milhoes-de-pessoas-e-chega-ao-maior-nivel-em-7-anos. Acessado em: Acessado em 09 de julho de 2020.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2019. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html#:~:text=O%20IBGE%20pesquisa%20a%20cor,brasileira%20com%20base%20na%20autodeclara%C3%A7%C3%A3o.&text=De%20acordo%20com%20dados%20da,1%25%20como%20amarelos%20ou%20ind%C3%ADgenas. Acessado em 09 de julho de 2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. 244p.

LABEM. Laboratório de demografias e estudos populacionais, 2020. Disponível em: https://www.ufjf.br/ladem/2020/05/19/milhoes-de-brasileiros-nao-tem-nenhum-documento-de-identificacao/. Acessado em: 07 de julho de 2020.

MBEMBE, Achille. “Necropolítica”. Arte & Ensaios, PPGAV, EBA, UFRJ, n.32, dez. 2016

SNIS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 2020. Do SNIS ao SINISA Informações para planejar o Abastecimento de Água Diagnóstico SNIS-AE 2019, 2020. Disponível em: http://www.snis.gov.br/downloads/cadernos/2019/DO_SNIS_AO_SINISA_AGUA_SNIS_2019.pdf. Acessado em 07 de fevereiro de 2021.

Karine de Souza Oliveira Santana
Sanitarista
Doutora em Medicina e Saúde
MBA em Gestão ambiental
Docente na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
Pesquisadora no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Raça, Gênero e Saúde (NEGRAS)
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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