Reino Unido endividou-se para proteger escravocratas

Conforme relembrou recentemente o jornal britânico The Telegraph, somente em fevereiro de 2015, o governo do Reino Unido, à época liderado pelo conservador David Cameron, finalmente terminou de pagar uma dívida descomunal de origem vergonhosa, contraída 180 anos antes.

Tratava-se da liquidação dos últimos pagamentos referentes a um imenso empréstimo contraído em 1835, pelo tesouro britânico, e que teve como objetivo indenizar proprietários de empresas agrárias nas colônias caribenhas que tiveram “perdas de propriedades” a partir da abolição da escravidão.

Calculadas a partir do número de “propriedade perdidas”, isto é, mulheres, homens e crianças libertas, as indenizações foram oficializadas em 1837, através da promulgação do Slave Compensation Act (Ato de Compensação Escravocrata, em tradução livre), cinco anos após a aprovação da abolição da escravidão, em 1833, pelo parlamento inglês e pelo rei William IV.

Para indenizar os quase 47 mil proprietários de escravos que se sentiram prejudicados pelo fim do regime servil, o governo britânico tomou emprestado 20 milhões de libras esterlinas, o que segundo estimativas representava cerca de 40% do orçamento do Estado britânico para o ano de 1833.

O valor do empréstimo foi tão colossal para o período que o governo britânico precisou arrecadar tal quantia junto ao mercado financeiro, vendendo títulos do tesouro sob condições bastante incomuns. O prazo de maturação daqueles títulos, isto é, quando eles poderiam ser pagos pelo tesouro britânico foi algo como 120 anos. Isso significou que o tesouro britânico começou a desembolsar os primeiros pagamentos somente a partir de 1957.

O valor de 20 milhões de libras (ou 2.4 bilhões atualizadas à inflação atual) não parece muito significativo nos dias de hoje, sobretudo para um orçamento como do Estado britânico, atualmente perto de 1 trilhão de libras. Mas para que possamos ter uma ideia do gigantismo do empréstimo à época, é necessário colocá-lo sob perspectiva.

Por exemplo, se um empréstimo dessa proporção fosse tomado em 2020, 40% do orçamento estatal britânico equivaleria a impressionantes 371,2 bilhões de libras esterlinas (ou 2,4 trilhões de reais).

É evidente, no entanto, que o Estado britânico no ano de 1835 não se compara com o que ele é hoje, 185 anos depois. Mesmo assim, faz-se útil compará-lo a outros gastos históricos do Reino Unido, como, por exemplo, a criação do Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês), no ano de 1948, ou o pacote de salvamento dos bancos após a crise financeira, de 2008, para ilustrar o tamanho do esforço britânico ao indenizar os escravocratas.

O Serviço Nacional de Saúde britânico – tão celebrado pelos sociais-democratas do mundo como um grande feito da política de bem-estar social no reino bretão –, que disponibilizou atendimento público de saúde para aproximadamente 46 milhões habitantes do Reino Unido, custou ao Estado cerca de 5% do seu orçamento anual na inauguração do serviço, em 1948, ou seja, 437 milhões de libras esterlinas (algo em torno de 16 bilhões atualizadas à inflação de 2019).

Outro gasto histórico (bem mais recente), destinado a “salvar” os bancos britânicos da crise financeira de 2008, representou a injeção de 123.93 bilhões de libras esterlinas nos caixas das empresas financeiras, equivaleu a vultuosos 18,4% do orçamento britânico para o ano de 2009.

Portanto, nada próximo à proporção do empréstimo tomado pelo tesouro britânico para compensar escravagistas do século XVIII e XIX.

Quem foram os beneficiários daquelas indenizações de 1837?
Além do gigantismo do empréstimo de 1835, salta aos olhos quem foram (e quem ainda são) os beneficiados por tais políticas compensatórias, dois anos depois.

A Universidade College of London (UCL), através do seu Centro de Estudos do Legado Escravagista Britânico, disponibilizou um amplo banco de dados contendo nomes de indivíduos e empresas britânicos que se beneficiaram, direta ou indiretamente, das empresas coloniais baseadas no trabalho escravo e das indenizações pagas em razão da abolição da escravidão.

Sem surpresa, nota-se que nesse banco de dados é possível encontrar menções às famílias mais ricas e tradicionais do Reino Unido, como, por exemplo, a família do próprio ex-primeiro ministro David Cameron; do ex-ministro Douglas Hogg; e até do aclamado escritor George Orwell. Há também nessa lista, como se é de se esperar, nomes de famílias ligadas às grandes empresas financeiras do Reino Unido, como o HSBC Bank; Lloyds Bank; Barclays Bank; Royal Bank of Scotland (RBS); Nacional Westminster Bank (NatWest); Danske Bank (da Irlanda do Norte); assim como de empresas seguradoras, transportadoras e até mesmo da bem-sucedida cervejaria inglesa Greene King.

Após as revelações do Centro de Estudos da UCL, algumas dessas empresas vieram a público comentar as suas ligações históricas com o regime escravista.

A cervejaria Greene King, por exemplo, através do seu executivo-chefe, Nick Mackenzie, disse ao jornal The Telegraph, no 17 de junho,que a empresa atualizaria seu website para incluir informações a respeito dos vínculos históricos “indesculpáveis com a escravidão”. A cervejaria também prometeu promover uma política interna de diversidade étnico-racial no seu quadro de funcionários. Porém, até o dia de hoje, 28 de junho, nenhuma menção ao histórico escravocrata foi adicionada à inscrição “200 anos de rica herança” que consta no website da companhia; e nenhuma informação sobre mudanças de políticas internas foi divulgada.

Já as empresas financeiras Lloyds, Barclays, Royal Bank of Scotland (RBS) e Danske publicaram notas afirmando, dentre outras coisas, que reconhecem a vergonhosa conexão de seus históricos acionistas, presidentes e diretores com os negócios escravocratas dos séculos XVIII e XIX; que entretanto não compactuam com nenhuma forma de discriminação; e que aplicarão políticas de ampliação da diversidade racial em seus quadros de funcionários.

Outras companhias, como o HSBC e o NatWest não se pronunciaram.

Sorry is not enough: um legado ainda a ser modificado
Apesar das declarações públicas de desculpas de algumas das empresas historicamente envolvidas com o tráfico de escravos e com as empresas coloniais, há ainda muito a ser feito. Essa é a opinião do historiador e professor Hilary Beckles, presidente da Comissão Caribenha de Reparações, que falou ao jornal BBC News sobre o assunto. Diz ele que os “pedidos públicos de desculpas não são suficientes” para que anos de exploração sejam dirimidos, embora seja importante que essas empresas tomem conhecimento de seus vínculos com a escravidão e se pronunciem publicamente. Mas acrescentou que é preciso ir além: “todas as instituições que criaram [a escravidão como negócio] precisam realmente vir a público e ajudar a arrumar isso, [com ações práticas]”.

Também ouvida pela BBC News, a professora doutora em história da Universidade London South Bank, Katie Donington, acrescentou que “o racismo – a ideologia utilizada para justificar a escravidão – é um legado que ainda guia a vida de pessoas de origem africana ou caribenha no Reino Unido”; e que “é um importante passo que companhias com vínculos históricos com o tráfico transatlântico de pessoas estejam agora reconhecendo seu passado”.

Algumas ações simbólicas, diretas ou oficiais, têm sido tomadas para a subtração desse legado escravista no Reino Unido. Há exemplos relacionados às homenagens dedicadas a próceres dos negócios escravagistas, como ao traficante de escravos Edward Colston (1636-1721), em Bristol, no sul da Inglaterra, cuja estátua foi arrancada de uma praça por manifestantes antirracistas e atirada no rio que corta a cidade, no dia 07 de maio; ou ainda a estátua em homenagem a Robert Milligan, outro notório traficante de escravos, que removida pelo atual prefeito de Londres, Sadiq Khan, no bojo das manifestações antirracistas nos EUA e no mundo. O prefeito londrino aproveitou a ocasião para iniciar uma política de revisão de todas as homenagens relacionados aos escravistas britânicos, seja em estátuas, monumentos ou logradouros na capital inglesa.

Ações como essas vêm se espalhando pela Europa, e há também iniciativas semelhantes no Brasil, no passado e no presente. A mais recente delas, apresentada pela deputada estadual paulista Erica Malunguinho (PSOL), prevê a retirada de homenagens a escravocratas de vias públicas paulistas, que devem ser posteriormente armazenadas em museus do estado. A empreitada dos antirracistas em São Paulo, entretanto, será árdua, particularmente no estado que não tem pudor de, por tantas vezes ao longo da sua história, ter homenageado genocidas e ditadores, chegando mesmo a batizar a sede de seu poder executiva como o “palácio dos bandeirantes”.

Enquanto algumas companhias e alguns governo pedem “desculpas” por suas atrocidades e seu papel fundamental nos empreendimentos escravocratas e coloniais, o legado racista e colonial, que formatou uma estrutura socioeconômico perversa, permanece intocado em muitos aspectos.

Há a certeza, entretanto, de que os descendentes dos espoliados, torturados e escravizados durante todo esse período, estão ávidos para receber bem mais do que meras “desculpas” e a remoções das loas conferidas aos seus algozes. Que tal 40% do orçamento do Estado britânico, só para começar?

 

FELIPE MUNHOZ MARTINS

É graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos.

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