Representatividade: grupo formado por cinco médicas negras inaugura clínica no Rio

Enviado por / FonteO Globo, por Eduardo Vanini

Com especialidades diferentes umas das outras, profissionais oferecem consultas personalizadas com foco na história do paciente

Enquanto o mundo inteiro debatia os avanços da telemedicina, acelerados pelas recomendações de distanciamento social trazidas pela pandemia, cinco médicas que vivem no Rio decidiram se reunir em torno de uma ideia: abrir a própria clínica. Desde as primeiras conversas, porém, elas deixaram claro que não seria só mais um endereço em que o foco estivesse na quantidade de consultas diárias. A vontade de oferecer um atendimento mais aprofundado e personalizado era um dos principais elos entre a cirurgiã plástica Abdulay Eziquiel, a cardiologista Aline Tito, a ginecologista e mastologista Cecília Pereira, a dermatologista Julia Rocha e a oftalmologista Liana Tito.

Foi exatamente dentro dessa premissa que o Grupo Ifé Medicina abriu as portas na Rua Marquês de Abrantes 170, no Flamengo, em julho deste ano. “Oferecemos consultas com tempo, sem correria, por meio do diálogo e de uma relação sólida com o paciente”, descreve Liana. O propósito, diga-se de passagem, está no próprio nome do lugar. “Queríamos algo curtinho e que remetesse à nossa ancestralidade”, conta Cecília, sobre uma preocupação ligada ao fato de as cinco sócias serem negras. A partir dessa ideia, o grupo começou, então, a buscar expressões no Google até se deparar com a palavra ifé, que significa amor em iorubá. “Foi paixão à primeira vista. Pensamos em como seria legal ter um nome que provocasse algum questionamento e, quando sua tradução fosse revelada, as pessoas pensassem: ‘Nossa! Que lindo’”.

Cecília ajudou a encontrar o nome da clínica Foto: Tick Oliveira

O embrião do projeto está num convite feito por Liana a Aline. A oftalmologista, de 39 anos, é irmã da cardiologista, de 44, e propôs que as duas montassem um consultório em conjunto. A ideia soou atraente porque ambas fazem atendimentos em outros lugares, e uma sala individual ficaria ociosa durante boa parte da semana. “Topei na hora e, 15 dias depois, ela me perguntou se aceitaria dividir o espaço com outras médicas”, conta Aline. “Começamos, então, a procurar por profissionais que tivessem a mesma ideia de empatia.”

Além do interesse pela consulta personalizada, as cinco sócias estão conectadas por currículos robustos. A dermatologista Julia, por exemplo, se especializou no Instituto de Dermatologia Professor Rubem David Azulay, um dos mais prestigiados do Brasil, além de ter feito um fellowship (tipo de estágio avançado em que o médico participa da rotina de um hospital) no Mount Sinai, em Nova York. “Foi desafiador acreditar que o nosso propósito era suficiente para empreendermos e abrirmos um negócio bem no meio da pandemia. Mas o fato de reunirmos boas formações técnicas nos deixou ainda mais seguras”, diz a médica, de 35 anos.

A presença nas redes é importante para Julia Foto: Jasmin Sanchez

Abdulay, que também fez um fellowship nos Estados Unidos, na Universidade da Califórnia, concorda com a amiga e compara o grupo a uma trança em que cada uma complementa o trabalho da outra. Afinal, as especialidades não se repetem. “Pensamos numa configuração em que pudéssemos oferecer um atendimento global aos pacientes. Se uma mulher chegar até nós com uma dor no peito, por exemplo, temos condições de avaliar se é no coração ou na mama”, explica a cirurgiã plástica, também de 35 anos.

As sócias reiteram em suas falas a preocupação de que a clínica seja compreendida como um espaço aberto a todo tipo de pessoa. “Não queremos provocar uma ideia de que o Ifé é um local para atendimento restrito à população negra”, adverte Aline. “Precisamos, na verdade, normalizar a presença das mulheres negras na medicina”. A união entre as cinco, portanto, soa como um caminho natural para a cardiologista. Do mesmo jeito, a ginecologista Cecília, de 33 anos, reconhece que a inauguração de uma clínica como a delas não deixa de ser um posicionamento político. Afinal, as situações de racismo ainda são recorrentes na área da saúde. “Quando chegamos a um centro cirúrgico, as roupas usadas por um médico, um enfermeiro e um técnico são diferentes umas das outras. Mesmo assim, sem nos perguntarem qual a nossa função, nunca nos entregam a roupa de médico.”

Aline deseja que a clínica atenda a um público diverso Foto: Tick Oliveira

Se a ideia é construir juntamente com a clínica uma nova narrativa, Liana nota que os efeitos já começaram a aparecer. Segundo ela, desde a inauguração, a sala de espera tem abrigado pacientes de diferentes profissões, religiões e tonalidades de pele. “É engraçado que, antes de começarmos as consultas, as pessoas já começam a falar sobre a vida. Isso indica que elas realmente percebem que estão num lugar diferente e se sentem à vontade para se abrirem conosco”, observa.

Durante as pesquisas para a definição do projeto, as médicas perceberam haver poucos empreendimentos com perfil semelhante no Brasil. Mesmo assim, elas têm se surpreendido com o sucesso imediato alcançado pelo negócio (a clínica não aceita planos de saúde e as consultas custam a partir de R$ 200). “Em pouco mais de um mês, precisei ampliar a minha frequência na clínica de uma para três vezes por semana”, relata Abdulay, que também tem um consultório no Leblon. “Acho que havia uma demanda reprimida por um espaço como o nosso.”

A empatia pelos pacientes é um elo entre Liana e as sócias Foto: Lu Veras

Parte dessa popularidade, elas dizem, tem como origem o bom e velho boca a boca, mas também a presença estratégica do grupo nas redes sociais. Além da página no Instagram (@grupoifemedicina), todas elas têm perfis profissionais abastecidos com conteúdos informativos sobre as respectivas áreas. Juntas, somam 42 mil seguidores. “A rede social move o mundo. A grande maioria das pessoas que chega até aqui diz: ‘Vi você no Instagram’”, diverte-se Julia.

Abdulay ressalta a pluralidade entre as colegas Foto: Debora Schmitt

A representatividade é tônica no perfil do empreendimento na rede social, com postagens que vão das dicas de saúde à literatura de autoras negras, mas também da clínica propriamente dita. Além das cinco sócias, a maioria das funcionárias são pessoas negras. Falar sobre isso faz Liana tecer uma reflexão especial sobre o público infantil que, no local, é atendido por ela e Abdulay.“Não tenho dúvida de que o Ifé mostra um novo papel da mulher negra para a sociedade, que passa a entendê-la em sua pluralidade, podendo ser médica, empreendedora e dona de clínica. E é na infância que começamos a construir essas imagens. Quado eu era pequena, sentia muita falta de exemplos como este.”

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