‘Retirou a camisinha e confessou, mas Justiça não puniu’: o caso da brasileira vítima de stealthing

Enviado por / FonteBCC, por Luis Barrucho

A brasileira Leila (nome fictício) é uma mulher com sede de justiça.

Ela foi vítima no Brasil do chamado “stealthing”, termo em inglês para quando um dos parceiros remove propositalmente o preservativo sem o consentimento do outro.

Apesar de ter juntado as evidências que considera necessárias para comprovar a violação, incluindo uma confissão do abusador, sua busca por uma reparação legal vem sendo, até o momento, em vão — após idas e vindas, o caso foi recentemente arquivado pelo promotor que o analisou, quase um ano após o crime.

No Brasil, diferentemente de alguns outros países, como o Reino Unido, o “stealthing” não é considerado estupro — uma vez que, para que esse tipo de crime ocorra, o ato sexual deve ter ocorrido “mediante grave ameaça ou violência”.

Contudo, existem alternativas legais para as vítimas buscarem justiça, como o artigo 215 do Código Penal (violência sexual mediante fraude), embora o desfecho nem sempre seja positivo, a exemplo do que aconteceu com Leila até agora (veja a opinião de especialistas ao fim desta reportagem).

Mas ela não pensa em desistir. “Vou lutar até o fim por justiça. Espero que meu caso possa ser o indutor de uma mudança na legislação”, diz ela.

Leila entrou em contato com a BBC News Brasil após ler uma reportagem sobre o assunto, publicada em 2017.

A reportagem teve acesso ao processo de Leila, sob segredo de Justiça, que inclui as supostas evidências do crime, a cópia do inquérito policial e a decisão da promotoria por seu arquivamento.

Em depoimento à polícia, o acusado confirmou o relato de Leila de que não usou o preservativo, mesmo tendo concordado que o sexo seria protegido, mas que tudo aconteceu “no calor do momento”. Segundo ele, “achei que estava sendo consensual, que ela tinha percepção de que eu estava sem preservativo, não agi de má fé em momento algum”.

Leia abaixo o relato de Leila e sua busca implacável por justiça:

No fim de abril de 2021, conheci um menino no Tinder e, eventualmente, transamos. Foram três relações e tínhamos três preservativos. Em todas as vezes, parei e falei: “a camisinha”. Em uma das vezes, ele disse: “a minha acabou”. Levantei, fui em outro quarto e peguei a que eu tinha. Amanheceu e ele foi embora.

No dia seguinte, não sei muito bem por quê, me veio uma sensação rara e fui checar os preservativos no lixo. Quando abri a lixeira, fiquei em estado de choque total. Um dos preservativos estava aberto, fora da embalagem, mas não havia sido usado.

Tirei uma foto e imediatamente enviei uma mensagem para ele, pedindo uma explicação. Ele se fez de desentendido. Insisti por uma resposta.

“Eu abri (a camisinha) e deixei do lado, mas acabamos usando outra depois. Não tem nada para se preocupar”, foi o que ele me disse. Segundo ele, “acontece que foi tudo muito rápido e no calor do momento acabou sendo assim”.

Ora, “no calor do momento”, eu parei todas as vezes para colocar a camisinha. Inclusive em uma das vezes levantei para buscá-la em outro local. E ele simplesmente resolveu não usar o preservativo e não me falou nada.

A partir do momento que descobri que ele fez isso comigo, foram horas de muito estresse. Uma indignação que não cabe no peito até hoje. Entrei em pânico. Fui à farmácia, comprei a medicação para evitar gravidez indesejada e mais tarde procurei atendimento médico para medicação contra Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). Chorava de soluçar como uma criança. Um nó na cabeça tentando entender por que isso aconteceu. Por que alguém faria uma coisa dessas?

Até hoje, não encontrei justificativa plausível.

No dia seguinte, procurei uma psiquiatra para me dar uma guia para acompanhamento psicológico, porque comecei a ter pensamentos do tipo: “nunca mais vou sair com ninguém”. “Não posso confiar em ninguém”. Mas racionalmente sei que não é esse o caminho e por isso, resolvi buscar ajuda o quanto antes.

Era tanto conflito e indignação, que eu queria puni-lo de alguma maneira, então, comecei a fazer buscas no Google para saber o que eu poderia fazer para buscar Justiça.

Descobri que havia sido vítima de stealthing, quando o parceiro retira o preservativo sem o consentimento da outra parte. Li várias reportagens, incluindo a da BBC News Brasil.

Munida de informação e sabendo que o que aconteceu é crime (segundo especialistas, o stealthing pode ser enquadrado como crime pelo artigo 215 do Código Penal, “violência sexual mediante fraude”), na mesma semana resolvi ir à delegacia fazer o registro de ocorrência policial.

Depois de três dias chorando, pensei que já estava forte o suficiente e fui sozinha à delegacia.

‘Pior momento da vida’

Na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), passei por um dos piores momentos da minha vida. Em vez de acolhimento e respeito, fui vítima novamente, dessa vez, do descaso.

Por conta da pandemia, havia uma faixa de bloqueio para entrar no local. Na frente de todos, a atendente gritava: “O que você quer?” E eu lhe respondi: “fazer um B.O” (boletim de ocorrência).

“Contra quem?”, gritou ela mais uma vez. “Contra um homem”, disse eu.

Foi muito ofensivo e humilhante a forma como eu e outras mulheres ali presentes fomos tratadas.

Quando fui chamada para relatar o caso, praticamente não me deixaram falar e sempre agiam de forma muito ríspida. Começaram a me perguntar: “Qual é o CPF do acusado? Qual é nome da mãe dele?”

Perguntas incabíveis. Onde já se viu, uma pessoa é vítima de um assalto, atropelamento, violência sexual e tem que saber o CPF do acusado e o nome da mãe dele para registrar o B. O.?

Tinha em mãos dois ou três possíveis endereços, registro de um CNPJ, endereço do trabalho e nome dele completo. Era como se não quisessem registrar minha queixa.

A atendente me tratava tão mal, que desabei e voltei à estaca zero de abalo emocional.

Quando ela viu que fiquei descontrolada emocionalmente, amenizou o tom e me disse: “Você já está tomando remédio, não vai ficar grávida e nem ficar doente”. Entretanto, não estava chorando pelo crime em si. E sim pelo atendimento horrível e traumatizante pelo qual estava passando.

Não sei como eu tive forças para ir no IML (Instituto Médico Legal) fazer os exames. Mas fui. O atendimento foi bem feito e me encaminharam para o serviço social/psicologia do hospital.

Todas as vezes que fui à delegacia, o atendimento foi sempre um “lixo”. E não era só comigo. Era abominável com todas que chegavam para ser atendidas. As pessoas eram tratadas com desdém.

É simplesmente traumatizante. Não sei dizer o que me doeu mais até agora. Se foi o atendimento da polícia ou o crime cometido contra mim.

Sem notícia sobre qualquer evolução do caso (a não ser em julho de 2021, quando meu abusador me procurou achando ruim que fiz uma denúncia contra ele), voltei à DDM para saber como estava o processo em novembro.

A policial que me atendeu me perguntou se eu queria processá-lo. Eu fiquei muito surpresa com essa pergunta e respondi que sim. Ela retrucou: “Mas não deu nada no exame do IML e você não está grávida”.

Conclusão: o processo estava “engavetado”. Não haviam feito nada até então.

Em seguida, perguntei se iriam precisar dos preservativos que ainda estavam comigo e ela respondeu que não, porque meu abusador já havia confessado o crime.

Mas o maior choque ainda estava por vir.

No fim de fevereiro de 2022, voltei à delegacia para acompanhar o processo. Tive a notícia que ele havia sido arquivado e avaliado por um delegado e uma delegada.

O processo havia sido avaliado em julho de 2021. Estive lá em novembro e não me falaram nada. Tentei tirar foto do meu processo para ler com calma em casa, mas ambas oficiais que estavam lá não me deixaram fotografá-lo.

Questionei como ele pôde ter sido arquivado, sendo que meu abusador corroborou meu relato de abuso e eu tinha anexado no processo toda a conversa por WhatsApp, na qual está claro o crime cometido.

Então a oficial respondeu: “Não somos nós que avaliamos, é o delegado”. Ela tentou justificar a decisão dizendo que em seis meses três delegados chefiaram a DDM e que agora iriam pedir a terceira delegada para reavaliar o caso.

Diante de tudo que aconteceu até aquele momento, avisei que estava aguardando o final do processo para reclamar na ouvidoria/procuradoria do município (aguardei por medo de represálias e interferência negativa na avaliação), sobre o atendimento as vítimas que procuravam auxílio, mas que agora, iria também ao Ministério Público (MP) reclamar do processo arquivado, mesmo com as provas e confissão do crime.

‘Abertura do inquérito’

Após a visita à DDM, fui ao MP.

Não era para menos e estava bem fragilizada por tudo o que me havia acontecido na delegacia.

Me esforcei para contar o que havia acontecido e a resposta inicial do promotor de Justiça foi: “Entendo sua indignação, mas a delegacia encerrou porque realmente não é crime. O que você pode fazer é processá-lo no âmbito cível”.

Respondi que meu interesse é que ele seja punido criminalmente, como a lei diz. Li ao promotor o artigo 215 do Código Penal. Ele citou os exemplos em que o artigo poderia ser utilizado, mas que acrescentou que ele não se aplicaria ao meu caso.

Insisti e perguntei sua opinião pessoal sobre o que me aconteceu. Ele colocou a mão sobre o Código Penal e disse que não era ele e sim a legislação. Mudei minha pergunta e questionei se no Brasil não havia possibilidade de punição. Segundo o promotor, somente se eu estivesse infectada com alguma IST (Infecção Sexualmente Transmissível), por exemplo.

Aos prantos, quase sem conseguir falar e sem ar, disse: “Olha, não quero ser grosseira e nem ofendê-lo, mas vou pedir-lhe uma gentileza: leia sobre ‘stealthing’. Dê uma estudada sobre o tema, para quando outra mulher procurar a Justiça, ela não tenha que passar por tudo que estou passando até agora”.

Apesar da dura e dolorosa resposta que havia recebido, o atendimento foi bom.

Agradeci, levantei e fui ao banheiro para tentar me recuperar antes de ir embora.

Poucos minutos depois, uma mulher foi atrás de mim no banheiro e disse: “o promotor quer falar com você”.

Quando cheguei à sala dele, ele me disse que havia pensado melhor e que agora entendia porque o caso que relatei era crime. E que sim, que poderia enquadrá-lo como crime e abriria um inquérito.

Em todos esses meses de dor e nãos que recebi, esse foi o primeiro sim que tive. Uma esperança por Justiça, enfim, surgiu.

‘Tudo por água abaixo’

Estava realmente otimista com um desfecho, mas tudo foi por água abaixo, quando, nas últimas semanas, descobri que meu caso foi analisado por um segundo promotor e ele optou pelo arquivamento.

Em sua decisão, ele disse que apesar de ser “reprovável, a conduta do acusado ao ter se aproveitado da confiança nele depositada pela vítima, não há provas suficientes do emprego de meios utilizados para enganar ou iludir a ofendida”.

O promotor entendeu que o modus operandido investigado não caracterizaria fraude, já que a vítima não foi induzida em erro, mas sim surpreendida pela conduta dele, que em tese sem o seu consentimento, manteve relação sexual sem o uso de preservativo.

Segundo o promotor, esse seria o contexto probatório. Ele acrescentou que não há maiores elementos de convicção e que as diligências policiais tinham sido exauridas sem que tivessem sido apurados suficientes elementos que autorizassem afirmar que o autor teria agido com o elemento subjetivo intencional de ludibriar a vítima que é nesses casos o fator exigido pelo tipo penal em tela.

Ou seja, ele me estuprou “sem querer”? “No calor do momento”? O que a Promotoria quer? Quer que meu abusador diga que teve a intenção de estuprar?

Fiz uma reclamação formal sobre o atendimento recebido na delegacia. Soube que minha queixa foi enviada à corregedoria e que uma apuração preliminar foi instaurada. Também reclamei da decisão do promotor junto à ouvidoria das mulheres do MP, mas a resposta deles foi que “não faz parte das atribuições da Ouvidoria avaliar ou analisar questões judiciais”.

Se a ouvidoria das mulheres do MP não trata a questão de gênero levantada, onde mais posso buscar auxílio?

Busquei assistência jurídica, mas os honorários dos advogados são altíssimos e eu não posso pagar. Nem acho justo com a realidade do país. E as outras mulheres que realmente não tem de onde tirar dinheiro para pagar esses valores?

Ou eu faço terapia, ou pago advogado. Por isso, até agora, estou sendo minha própria advogada.

Ainda que a mulher queira seguir em frente com as denúncias, são muitos os obstáculos. Muitos. Somos desestimuladas o tempo todo, com argumentos do tipo: não vai dar em nada, você vai se expor, etc.

Tenho todas as provas de que meu abusador não usou o preservativo de forma intencional e consciente, tenho a confissão dele no Whats App e no depoimento na delegacia e mesmo assim tenho que brigar com o mundo para fazer valer o que é meu por direito.

Espero que minha horrível experiência sirva para ajudar outras mulheres que sofram qualquer tipo de violência.

Apesar da chance mínima de sucesso, se essa causa for ao meu favor, vai ser um grande avanço para conscientizar os homens sobre respeito ao corpo da mulher.

O relato de Leila termina aqui.

Línea

O que dizem os especialistas

A BBC News Brasil ouviu especialistas do Direito em relação ao “stealthing”.

Elas disseram que, segundo a lei brasileira, a prática não poderia ser considerada estupro.

Isso porque, segundo o artigo 213 do Código Penal, estupro consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

No entanto, ressalvaram que existem alternativas legais às mulheres que se sintam vítimas dessa situação.

Elas citaram os artigos 130 (perigo de contato venéreo), 131 (perigo de contágio de moléstia grave) e 215 (violência sexual mediante fraude) do Código Penal brasileiro, uma vez que o sexo foi de forma desprotegida e não consensual.

Outra possibilidade é entrar com uma ação cível, e não criminal, contra o acusado, ou seja, uma ação reparatória ao dano causado, como, por exemplo, uma gravidez indesejada ou transtorno psicológico.

No entanto, há numerosos obstáculos, entre os quais a falta de jurisprudência e estatísticas oficiais sobre o assunto.

Um dos principais entraves, segundo as especialistas, continua sendo “a falta de perspectiva de gênero do operador do Direito”.

“Como não há um crime próprio para o stealthing, cabe muito da interpretação dos operadores do Direito. O debate é muito recente e ainda não chegou em peso ao Judiciário. Esses operadores do Direito ainda não se depararam com esse tipo de caso. Além disso, falta usualmente uma perspectiva de gênero, ou seja, encarar situações como o stealthing como uma violência de gênero”, diz à BBC News Brasil Ana Paula Braga, sócia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas e especialista na defesa dos direitos das mulheres.

Flavia Nascimento, defensora pública e coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, concorda.

Ela lembra ser tão recorrente esse tipo de viés por parte de promotores e juízes que Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou recentemente aos tribunais de todo o país a adoção do protocolo de julgamento com perspectiva de gênero.

“A palavra da mulher costuma ser desconsiderada. É para a gente refletir. As mulheres são o todo tempo estimuladas a denunciar seus agressores e as violências sofridas. E quando elas denunciam, qual resposta elas têm?”, questiona Nascimento.

“As mulheres vítimas de violência sexual demoram ter coragem para denunciar e, quando denunciam, acabam sendo vítimas de um julgamento moral e suas palavras, desqualificadas. É muito difícil a gente mudar (essa realidade). Costumo falar que os direitos das mulheres são relativizados pelo sistema de justiça.”

Para a advogada Braga, “para mudar essa cultura, é preciso ter denúncia. Quanto mais mulheres denunciarem, mais isso vai se tornar um problema visível. E também acho que o apoio midiático, de conscientização, é muito importante nesse sentido”, conclui.

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