Do Rolezinho a Ferguson: O Racismo em 2014

O ano que termina foi marcado por um debate intenso acerca do racismo e o movimento negro protagonizou grandes discussões

Por Joselicio Junior*

O ano de 2014 foi muito intenso. Copa do Mundo no Brasil, eleições presidenciais com uma grande polarização política e ideológica. No debate racial o ano também foi bastante intenso e suscitou grandes discussões no país e no mundo.

Entre o final do ano de 2013 e começo de 2014 umas das grandes polêmicas foram os fenômenos dos rolezinhos, em que os jovens organizaram grandes encontros em shoppings  para se divertir e foram duramente reprimidos pelos seguranças privados e pela polícia. Essas ações provocaram um grande debate, pois escancararam a segregação na sociedade brasileira e como ela é determinante para definir os espaços que negros, pobres e periféricos podem frequentar, ou de que forma podem frequentar.

Sem a pretensão de instrumentalizar os rolezinhos – mas com o objetivo de provocar um amplo debate na sociedade –, o movimento negro, movimentos sociais e ativistas convocaram o ato “Rolê Contra o Racismo”, que reuniu cerca de 300 pessoas nas imediações do Shopping JK Iguatemi.  Localizado no Itaim Bibi, em São Paulo, o empreendimento havia conseguido na Justiça o direito de impedir os rolezinhos e filtrar quem poderia ou não entrar no local.

Esse debate foi bastante interessante, pois vivemos em uma sociedade que prega a inclusão das pessoas através do consumo, que atiça o imaginário da juventude com marcas e modelos que estabelecem um padrão a ser alcançado, ao mesmo tempo em que impõe limites de onde essa população pode ou não consumir.

Se por um lado, em 2014, os olhos do mundo estavam focados nos gramados, também foram nessas arenas que rolaram casos emblemáticos de racismo, como a reação do jogador do Barcelona, Daniel Alves, de comer uma banana jogada por um torcedor do Villarreal, durante uma partida do campeonato espanhol. Esse ato desencadeou uma campanha provocada por Neymar – #SOMOSTODOSMACACOS –, muito criticada pelo movimento negro, tendo em vista que chamar os negros de “macaco” remete ao racismo científico, que estabelecia os negros como seres menos evoluídos, provocando um grande debate na sociedade brasileira. O episódio também gerou ações oportunistas de midiáticos, como Luciano Huck, que tentou ganhar dinheiro vendendo produtos com os dizeres “somos todos macacos”.

Outros casos de racismo no futebol que também tiveram repercussão foram os que envolveram o árbitro Marcio Chagas, que encontrou bananas em seu carro após um jogo do campeonato gaúcho; o jogador Arouca dos Santos, que foi xingado de macaco por torcedores do Mogi Mirim; o zagueiro Paulão, do Internacional, que afirma que torcedores do Grêmio imitaram macaco para ofendê-lo; e o volante Marinho, do São Bernardo, que registrou boletim de ocorrência por ter sido chamado de macaco por um torcedor do Paraná.

Mas o episódio de maior repercussão e desdobramento foi o caso envolvendo o goleiro Aranha, do Santos F.C., xingado pela torcida do Grêmio durante partida da Copa do Brasil. Ele chegou a parar o jogo para denunciar a violência que estava sofrendo e foi ignorado pelo árbitro, porém as imagens das redes de TV registraram torcedores xingando o jogador santista, o que provocou o indiciamento de um grupo de torcedores por injúria racial. Entre estas pessoas estava Patricia Moreira, que aparece nas imagens chamando Aranha de macaco.

Em meio a toda repercussão do caso, o que mais chamou a atenção foi a postura serena e firme do goleiro, que não aceitou cair num sensacionalismo midiático, mostrou consciência racial – adquirida, segundo ele, através do rap –, e não se intimidou em levar adiante a denúncia de racismo.

Também no campo cultural o que se destacou no ano de 2014 foi a estreia da minissérie global de Miguel Falabela, denominada “Sexo e as Negas”.  O nome já dispensa comentários, e seu conteúdo reforça ainda mais as justas críticas feitas por ativistas do movimento negro, em especial mulheres negras. Nos últimos trinta anos o movimento negro vem se esforçando para denunciar a democracia racial como mecanismo de invisibilidade da população negra e, ao mesmo tempo, a construção de estereótipos que reforçam a inferioridade dessa comunidade.

Desde os tempos da escravidão, a mulher negra é subjugada à servidão, seja no trabalho, em especial no ambiente doméstico, ou para servir como objeto sexual. Essa construção de mulher como objeto sexualizado é reforçada em pleno século 21 através da minissérie em cadeia nacional.  Esse debate reforça a necessidade de ampliar a discussão da democratização dos meios de comunicação, que hoje se concentram nas mãos de poucas famílias integrantes de uma elite que incide na construção de uma ideologia conservadora e racista.

Do ponto de vista institucional, no âmbito federal, a grande novidade foi o estabelecimento de 20% de cotas para negras e negros no serviço público federal. Temos também o programa Juventude Viva, que prevê ações para diminuir a vulnerabilidade de jovens negros mortos pela polícia, mas que tem muitas dificuldades para sair do papel e que prega como sua principal bandeira a aprovação do Projeto de Lei 4471/2012, que prevê o fim dos autos de resistência.

Em relação à violência, chamou atenção o grande número de vídeos que passaram a circular pela internet com cenas de violência praticadas por policiais, tornando as redes sociais um instrumento poderoso de denúncia dos abusos cometidos pelos agentes do Estado. O vídeo que mais chocou foi o de Cláudia da Silva Ferreira, de 38 anos, sendo arrastada por uma viatura da polícia do Rio Janeiro.

Vários outros vídeos também tiverem grande repercussão, mas chamo a atenção para aquele que mostra um camelô sendo assassinado por um PM no centro de São Paulo, e mais recentemente, para outro que mostra um garoto gritando por socorro e logo em seguida sendo executado com dez tipos pela PM na zona sul da capital paulista. Na sequência, no inquérito, os policiais afirmaram que houve confronto seguido de morte, mais conhecido como auto de resistência, mecanismo utilizado desde a ditadura militar para encobrir os crimes praticados por policiais. Ou seja, o Estado basicamente concede o direito de matar ao seu agente, que está na ponta do sistema.

A denúncia da violência praticada especialmente contra a juventude negra não é uma novidade no movimento negro, mas neste ano de 2014 ganhou novos contornos e visibilidade. No dia 22 de agosto, a partir da articulação da campanha Reaja, da Bahia, foi construída uma Marcha Nacional Contra o Genocídio do Povo Negro, que teve ações em quinze cidades e que, só em São Paulo, reuniu mais de 3 mil pessoas.

No mês de novembro, a Anistia Internacional lançou a campanha Jovem Negro Vivo, com bastante repercussão, evidenciando dados do Mapa da Violência, que apontam que em 2012 56 mil pessoas foram assassinadas em nosso país, colocando o Brasil no topo das mortes violentas do mundo, com 30 mil jovens entre 15 e 29 anos assassinados, dos quais 77% jovens negros.

Mesmo com dados tão latentes, a morte negra em nosso país é naturalizada e muitas vezes invisível. Neste sentido, as grandes mobilizações que ocorrem no EUA por conta da morte de Michael Brown, em Ferguson, e Eric Garner, em Nova York, serviram de oxigênio para a luta no Brasil e provocaram a construção do ato Ferguson É Aqui!, que reuniu mais  de 2 mil pessoas no centro de São Paulo. Os manifestantes marcharam da Praça da República até a Secretaria de Segurança Pública, no último dia 18 de dezembro, com a promessa de novas mobilizações no começo de 2015 para exigir um posicionamento do novo secretário.

O quadro apresentado acima demonstra que estamos vivenciando um momento complexo da luta antiracista, com possibilidades e desafios, pois na medida em que o racismo se torna mais visível, ampliam-se as possibilidades de conflitos. O racismo brasileiro é um discurso muito sofisticado e enraizado, e sua desconstrução também exigirá uma sofisticação.

Neste sentido, 2015 é um ano desafiador. São trinta anos de redemocratização, mas até que ponto essa democracia chegou às periferias do nosso país? São vinte anos da Marcha Zumbi 300 anos, um marco para construção de uma agenda política antiracista. Também está prevista a Marcha Nacional das Mulheres Negras em Brasília. Nesse caldeirão, é importante ressaltar que tomará posse no Congresso Nacional a bancada mais conservadora desde 1964, que será uma pedra no sapato das pautas progressistas, combinada com uma crise econômica que ameaça afetar a oferta de emprego e a expansão do crédito e produzirá corte nos programas sociais, o que, por sua vez, interfere diretamente na qualidade de vida da população mais pobre, formada na sua imensa maioria pela comunidade negra.

A construção do Ato Ferguson é Aqui! foi uma demonstração de que ações unitárias do movimento negro e dos demais movimentos sociais é essencial e vital para os desafios do próximo período, dando visibilidade e combatividade para o Protesto Negro.

”Hoje o Quilombo vem dizer,
Favela vem dizer,
A rua vem dizer,
QUE É NÓS, POR NÓS!”
MANO TEKO.

(*) Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho, é jornalista e militante do Círculo Palmarino

Foto: Igor Carvalho 

Fonte: Spresso SP

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