Importante mesmo é a clareza do invólucro. É um dom de Deus ter uma dessas peles que não toleram qualquer descuido sob o sol, e cujas transparências denunciam os processos interiores que desembocam em fortes ruborizações. Esse é o meu caso. Sou de tal branquitude que minhas veias são como minúsculos rios verdes a percorrerem a superfície de meu corpo. Mas os olhos, em compensação, têm uma opacidade onde só meus antepassados europeus conseguiriam penetrar. Com esses olhos de branco, identifico incansavelmente todos que são de minha raça, porque desde cedo, aprendi a ter orgulho de minha clareza.
Por Sueli Carneiro
Não. Essa frase não sai de um manifesto da Ku Klux Klan. Não é uma declaração de Thomas Blanton que acaba de ser condenado, nos EUA, á prisão perpétua, pela morte de 4 meninas negras por um atentado a bombas da KKK cometida em 1963. O autor não é norte-americano, nem branco sul-africano. É um branco brasileiro falando, sem medo, e sem hipocrisia sobre o significado do ser branco no Brasil.
Está no livro Preto e Branco – a importância da cor da pele do jornalista Marco Frenette, (editado pela Publisher Brasil), recém lançado que acabo de ler vorazmente. No prefácio de Lobão pressinto: Vai doer! E não dá outra. Já, nas primeiras páginas, o autor nos brinda assim: “Criança ainda, já me ensinavam a louvar a monotonia da brancura, enquanto ia confundindo a pele escura com ausência de dignidade e bravura. Durante os anos de minha primeira infância, muito antes de atingir uma idade em que pudesse pelo menos vislumbrar as possibilidades da razão, fui incentivado a utilizar minha cor como uma muleta para me firmar como pessoa. (…) E uma das coisas mais perniciosas que me ensinaram em meu curso básico de racismo foi a de manter uma distância física e espiritual da pele negra, pois ao menor toque poderia ser vítima de uma comunhão fantástica, que me modificaria para sempre. Eu me tornaria “um deles”, me diziam. ”
Num contexto cultural em que a hipocrisia e a covardia são a tônica na abordagem da questão racial, um autor branco vem á luz para falar criticamente, do lugar do privilégio da cor. Sem tergiversações. È a primeira vez que me lembro de ter lido um branco brasileiro falando a partir desse lugar: da hegemonia cultural, moral, ética e estética da branquitude. Eqüivale a uma rebelião contra a conspiração de silêncio e a hipocrisia que cercam o tema.
O autor, desfia os meandros da produção e reprodução cotidiana do racismo: na escola, na família, na mídia, no conjunto da sociedade brasileira. Revela em toda as suas nuances do segredo mais bem guardado dos brasileiros: a forma pela qual se constrói a superioridade dos brancos e a inferioridade dos negros, ao que essas construções se prestam e sobretudo como as dissimulamos: “Era um alívio meio torpe poder olhar para nossas peles brancas, que víamos como futuros passaportes informais para as coisas boas do mundo. Era uma contida felicidade por não ser negro (…) Gostávamos de ter sempre um pretinho por perto para nos sentirmos melhor do que ele”. Nada que nós negros não saibamos. Impressiona-nos por ser tudo o que o mundo branco sabe, faz e esconde.
O poeta negro Arnaldo Xavier, que recorrentemente cito nessa coluna costuma dizer que a construção da solidariedade dos homens para com a luta das mulheres requer, de maneira ineqüívoca, a traição do machismo e de seus privilégios. Frenette em seu Preto e Branco parafraseia o poeta com a sua disposição de trair o racismo e principalmente os seus maneirismos, tipicamente brasileiros: a dissimulação, o cinismo, e a hipocrisia.
Frenette elenca um conjunto do que ele chama de fatos concretos “que possibilitam um contato mínimo com a realidade racial brasileira.” Dentre eles diz o autor: “há milhões de brancos no Brasil que são racistas, e que gostam de ver um negro pelas costas; (…) “há outros milhões de brasileiros negros que sofrem o racismo dos milhões de brancos racistas.” (…) “há milhões de brancos não racistas no Brasil, mas que nem por isso reconhecem ou se importam com a situação difícil dos negros brasileiros.”
Frenette expõe as vísceras daquilo que Guerreiro Ramos chamou de “patologia do branco brasileiro”. Mostra também, as situações-limite de perda de humanidade e de auto-flagelo a que o racismo e a discriminação racial, conduzem o negro destruído pelo complexo de inferioridade racial.
Sem ilusões considera que “a diminuição do racismo não é tarefa da ação do tempo, mas sim da mobilização das pessoas.” É essa mesma consciência que vem aglutinando pessoas negras e brancas e de diferentes identidades religiosas num processo de reflexão para a criação de uma experiência inusitada em São Paulo, que é a construção do Instituto de Cura do Racismo que tem por pressuposto o entendimento de que o racismo é um dos males mais persistentes que: corrompe aqueles que o praticam; retarda o desenvolvimento das potencialidades de suas vítimas e impede o progresso humano. Uma patologia social, que a todos infecta e que só, o reconhecimento de sua ação devastadora, e a firme decisão de combate-la, pode, talvez, permitir que todos, que estão conscientes desse mal, possam, solidariamente se curarem. Uns com a ajuda dos outros.
Más, para todas as possibilidades de superação moderadas, que o problema possa conter, Frenette assegura, á guisa de conclusão: “o Brasil negro – verdadeiro gigante adormecido – não emergirá de seu sono sem luta”…