As UPPs representaram uma trégua parcial, mas nunca foram encaradas pelos moradores das favelas como uma solução sustentável
por Eliana Sousa Silva / Itamar Silva / Marcelo Burgos, do O Globo
O Rio vive, há décadas, sob o signo da “guerra urbana”. Tal representação, contudo, mais mascara do que explica uma realidade bem mais complexa do que sua pretensa redução a uma luta entre forças do bem contra o mal. Como se sabe, a configuração de grupos armados de traficantes e milícias em favelas e territórios populares está historicamente associada a formas perversas de articulação com agentes do Estado, tornando tudo bem mais difícil de ser compreendido.
Também é verdade que o signo da “guerra” vem construindo uma configuração homóloga a ela, definindo comportamentos que contribuem para confirmar a sua existência. A isso se segue uma corrida armamentista, que desperta gulosos interesses do tráfico de armas pela “guerra do Rio”. O resultado desse encadeamento é o absurdo aumento da letalidade e do sofrimento entre os próprios policiais e suas famílias, e entre os moradores das favelas e periferias da metrópole, vítimas preferenciais dessa lógica funesta.
As UPPs representaram uma trégua parcial nesse processo, sobretudo para os territórios populares onde foram instaladas, mas nunca foram encaradas pelos moradores das favelas como uma solução sustentável. Conforme pesquisas no período de maior êxito da experiência das UPPs, eles a viam como positiva, mas muito mais porque a percebiam como uma pacificação da própria polícia, na medida em que com as UPPs são suspensos, momentaneamente, as piores arbitrariedades policiais praticados de modo costumeiro nas favelas.
Com o esgotamento da experiência das UPPs e o recrudescimento das incursões policiais, a população das favelas e periferias vive nesse momento uma situação de absoluto terror. Embora a grande imprensa venha noticiando com frequência o drama dos moradores, a tragédia diária vai além do que sai nos jornais. Mas, talvez, o mais grave do quadro atual seja a ausência de perspectiva, que tende a produzir fatalismo e resignação na população, mas também perda de sentido para os próprios policiais quanto à racionalidade de suas ações. Eles próprios são vítimas da narrativa da ideia da guerra, e que precisa transformá-los em “heróis” que “morrem pela sociedade”, como têm reiterado as autoridades policiais, quando, a rigor, do que precisam é serem tratados como profissionais da segurança pública.
Esse cenário de ausência de perspectiva permite que, perigosamente, se aceitem como legítimas posições como a do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Sergio Westphalen Etchegoyen, que, insistindo no signo da guerra, admite a inevitabilidade de perdas humanas nas operações com as Forças Armadas no Rio: “Vai acontecer. É previsível que aconteçam coisas indesejáveis, inclusive injustiças. Ou a sociedade quer ou não quer”, declarou Etchegoyen para uma plateia de empresários, no evento “Brasil de Ideias”, em agosto, no Rio.
Essa crise profunda de perspectiva cria, paradoxalmente, uma janela de oportunidade para uma ampla renovação do paradigma da segurança pública historicamente adotado no Rio. Para isso, é necessário que a sociedade civil, sobretudo as organizações de bairros, favelas e periferias, as universidades, o Ministério Público, a Defensoria Pública e as lideranças políticas realmente comprometidas com o bem-estar da população se irmanem na construção de um espaço público de diálogo e de defesa de uma política de segurança suste ntável e pautada pela linguagem dos direitos.
Acreditamos que o primeiro resultado palpável dessa mobilização possa ser a desconstrução do signo da guerra e o entendimento de que a segurança pública é um serviço público, que deve ter como fundamento inegociável o reconhecimento do direito à vida de todas e todos os cidadãos fluminenses, independentemente do seu CEP.
Eliana Sousa Silva é diretora da Redes Maré, Itamar Silva é diretor do Ibase, e Marcelo Burgos é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio