ROSELI FISCHMANN: Currículo de desigualdades

A crise desencadeada pelo Enem é proporcional à sua relevância na vida de tantos jovens que querem ingressar nas universidades públicas ou conseguir acesso a um dos programas de apoio do governo para o ensino privado. Classificar estudantes, mais do que medir competências, é uma árdua equação entre as expectativas de cada jovem e da sociedade, as políticas públicas, os direitos de todos e as heranças históricas ocultadas pelo tempo.

Na Colônia não havia ensino superior, já que não interessava a Portugal emancipar o Brasil pela educação; é um período de mais de 300 anos, dos 510 após Cabral. Para cursar ensino superior, ia-se a Coimbra; se aqui tivesse estudado com jesuítas, haveria fácil equivalência de estudos, porque era dirigida pela mesma Companhia de Jesus, com verbas do Padroado Régio.

A vinda da Família Real em 1808 trouxe a necessidade de “civilizar” a nova sede da Corte, criando-se a Escola de Anatomia. Após a Independência, o primeiro curso seria o de Direito, com a criação das duas primeiras faculdades nessa área, a do Largo de São Francisco e a de Olinda, em 1827. Dessa época, registra-se a ausência do poder público na oferta do ensino de primeiras letras, em um prenúncio dos equívocos que percorreriam nossa história. Os estudantes que poderiam candidatar-se aos cursos superiores provinham de escolas mantidas por ordens religiosas católicas, ligadas à então igreja oficial e subsidiadas pelo Império. Ou recebiam instrução dada por preceptores, em seus lares. O Império criou o mecanismo de “exames parcelados”, que, organizado por província, aos poucos substituiu e desestruturou o ensino regular, pois era determinante para concorrer ao ensino superior. O parcelamento de exames, sem exigência de frequência, abreviava o caminho.

Tardiamente, na década de1930, começaram as universidades do País. O desenvolvimento da pesquisa, articulada com ensino e extensão, passou a estruturar a tríplice missão das ainda poucas universidades. As vagas limitadas impunham processo seletivo rigoroso, em fases eliminatórias de provas escritas e orais.

A crise de 1968 teve no vestibular um de seus temas mais candentes. O exame era ainda eliminatório, com nota mínima para aprovação em cada disciplina. Esse critério elevou o rendimento dos estudantes, havendo, aos poucos, mais aprovados do que vagas. Era a figura do excedente que reivindicava, pela aprovação, o direito à vaga inexistente. O governo militar resolveu a situação alterando o critério de eliminatório para classificatório, com o que, formalmente, não mais haveria excedentes. Foram criadas universidades federais pelo Brasil, necessidade antiga, esperando resolver a demanda. Com o critério classificatório, somado ao sistema de provas objetivas, o acesso à universidade ganhou novos contornos.

Ao mesmo tempo, nos anos 1970 o ensino obrigatório passou de quatro para oito anos, eliminando o gargalo do exame de admissão e atribuindo identidade ambígua ao ensino médio. O ensino privado viveu a abertura de facilidades para a criação de cursos de ensino superior, com o que se ampliaram vagas, mas atreladas a mensalidades.

A leva seguinte de mudanças no ensino superior viria com a Lei nº 9394/96. Houve a abertura para instituições privadas utilizarem a denominação “universidade”, com base na criação de programas de pós-graduação stricto sensu reconhecidos pela Capes. Era uma sinalização de abertura do mundo da pesquisa. Mas o vestibular continuava classificatório e, com a ampliação de vagas e níveis, houve a possibilidade de maior proximidade da população com a ideia de cursar uma universidade.

Já a partir de 2003 surgem outras propostas, seja de ampliação, como o Reuni, reestruturando e ampliando as universidades federais, seja a resposta aos custos das particulares, com o Prouni e o Fies, alvos também de processos seletivos.

O marco de um debate mais consequente em relação ao efetivo questionamento da relação entre acesso à universidade e desigualdade, contudo, chegaria apenas com a proposta de ações afirmativas, erroneamente simplificadas como “oferta de cotas”. O que se coloca nesse debate é a desigualdade criada historicamente por um tipo de seleção que privilegiou os privilegiados, fragilizando a democracia.

O Enem se propõe a ser um instrumento mais igualitário, em nível nacional, mas tem lidado mal com questões administrativas, da dificuldade de reconhecer os estudantes que, por razão de crença, guardam o sábado (bastaria realizar o exame em dois domingos) a problemas com gráficas e sigilo. Tem méritos relevantes, no sentido de buscar um caminho nacional mais igualitário para o acesso às oportunidades educacionais no ensino superior, de forma, também, a valorizar o ensino médio não como curso “de passagem”, mas com valor em si, parte da educação básica e da formação do cidadão. Resta, agora, ajustar as diversas falhas que, pela extensão da proposta do Enem, provocam tanta comoção, para o que é indispensável aprender as lições do passado.

ROSELI FISCHMANN É PROFESSORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA USP E DA UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

Fonte: Estadão

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