Sakamoto: “Trabalho escravo não é um desvio, mas uma ferramenta do sistema”

Jornalista lança obra em que analisa escravidão contemporânea

Há 16 anos uma chacina de auditores-fiscais do Ministério do Trabalho, na cidade mineira de Unaí, chocou o Brasil e abriu espaço para um debate urgente: o combate ao trabalho escravo. No dia 28 de janeiro de 2004, os servidores Nélson José da Silva, João Batista Soares Lage, Eratóstenes de Almeida Gonçalves e o motorista Aílton Pereira de Oliveira foram assassinados em uma emboscada. O grupo realizava uma fiscalização de rotina em fazendas da região rural do município.

O mandante confesso do assassinato, Norberto Mânica, foi condenado em segunda instância a mais de 60 anos de prisão. Os empresários, Hugo Alves Pimenta e José Alberto de Castro, também confessaram participação no crime como intermediários e foram condenados. No entanto, 16 anos após a chacina, nenhum deles está preso.

Em 2009 o governo estabeleceu 28 de janeiro como Dia do Auditor Fiscal do Trabalho e Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Para marcar a data o jornalista Leonardo Sakamoto lança o livro Escravidão Contemporânea, que reúne textos de especialistas no assunto do mundo todo. “Não se trata de um apanhado de artigos. O livro foi pensado em uma estrutura narrativa que pensa no problema, nas causas e nas consequências.”, afirma.

Sakamoto trabalha no combate ao trabalho escravo há mais de duas décadas e está à frente da Repórter Brasil, uma das principais organizações de combate ao trabalho escravo contemporâneo no país. Ele conversou com o Brasil de Fato sobre o novo livro e sobre o desafio global que acabar com a prática representa.

Brasil de Fato: Há anos você se dedica ao tema do trabalho escravo, atuando inclusive com organizações internacionais e sempre em contato com especialistas e realidades do mundo todo. A obra Escravidão Contemporânea reúne autores de diversos países. Considera que traçar um panorama mundial sobre essa realidade é ponto chave para o combate?

Leonardo Sakamoto: O Brasil é um país referência no combate ao trabalho escravo, em diferentes governos inclusive. O governo Fernando Henrique teve o mérito de começar isso, o governo Lula ampliou e aprofundou o combate e ele vem se mantendo até agora, no governo Bolsonaro. O Brasil é uma referência global, apesar do sistema ter uma série de problemas. Atualmente a estimativa das Nações Unidas é de que existam 40,3 milhões de pessoas escravizadas em todo o mundo, produzindo um lucro anual de 150 bilhões de dólares. É claro que é um problema global, é um problema que tem um padrão de exploração, tem um padrão de roubo de dignidade e de liberdade, mas também vai se adaptando às realidades de cada país. No entanto, todo esse trabalho escravo está conectado às redes de produção globais. O trabalho escravo contemporâneo não pode ser visto simplesmente como uma ocorrência perdida nos rincões do mundo. Ele está inserido na rede de produção global. Não significa que a economia do mundo dependa do trabalho escravo, mas o trabalho escravo está na economia do mundo, está em rede de produção, está em rede de comercialização. Por exemplo, a produção de uma TV: tem trabalho escravo na extração do minério na África, tem trabalho escravo na montagem dos componentes na Ásia e, por fim, você tem trabalho escravo na montagem do produto final na América do Sul. Então você tem ocorrência de trabalho escravo às vezes em dois ou três continentes diferentes na mesma cadeia produtiva. Se a exploração do trabalho escravo é global e alimenta uma rede global, é claro que o combate também precisa ser global. A gente fala de globalização de comércio, mas a gente também tem que falar de globalização do combate ao trabalho escravo. É importantíssimo ressaltar que, se em vários países do mundo houve o surgimento de leis e o sistema de combate melhorou, é por causa de uma rede de combate internacional, que proporciona muito debate, informação, muita discussão. O Brasil acabou fornecendo subsídios para países como Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, França, para construir seus projetos próprios, que em alguns casos melhoram os instrumentos brasileiros ou vão por outros caminhos. Existe um sistema global que precisa ser levado em consideração. Cada país precisa fazer sua parte, mas o sistema como um todo também precisa fazer sua parte. A gente precisa avançar para uma responsabilização dessas cadeias que se beneficiam do trabalho escravo. Por meio das Nações Unidas há debates sobre isso em Genebra, sobre a questão da responsabilidade obrigatória vinculante para que as empresas sejam obrigadas a se comportar seguindo padrões de direitos humanos internacionais, mas é claro que o debate é muito difícil, mas a gente vai ter que avançar tanto no debate nacional quanto no internacional.

O Brasil seria um exemplo a ser replicável, levando em consideração os exemplos que você citou de países que usaram o nosso exemplo como subsídio para políticas próprias?

O caso brasileiro ele é visto muitas vezes como um caso difícil de ser replicado na sua totalidade. Claro que alguns elementos têm sido estudados e replicados, como a lista suja do trabalho escravo, que é o cadastro de empregadores que cometeram esses crimes, criado em 2003. É um instrumento importantíssimo para garantir transparência, para que o setor produtivo brasileiro enxergue o que está acontecendo e possa tomar providências. Mas é claro que tem limitações. O Brasil tem um sistema de fiscalização que, apesar de estar perdendo e reduzindo o número de profissionais e ter problemas de recursos, ainda tem um sistema forte de fiscalização. É a base do combate ao trabalho escravo no Brasil, a verificação de denúncias e o resgate de trabalhadores onde foi constatado o trabalho escravo. O Brasil tem mais de 2 mil fiscais do trabalho atuando nacionalmente e isso é um diferencial que não existe em muitos países. Até existe a figura do auditor, mas não como no Brasil e, ao mesmo tempo, há lugares em que essa fiscalização não existe. Então, muitos países tem que adotar práticas de combate ao trabalho escravo partindo da ação de empresas. As empresas são instadas a demonstrar compromisso e combater esse problema, porque você às vezes não tem dados de fiscalização e de libertação de trabalhadores. Cada país do mundo tem suas peculiaridades e a reprodução do modelo brasileiro depende bastante dessas características. Mais do que a reprodução, o interessante é que cada país consiga inspirar-se nos exemplos anteriores. Essa troca internacional é muito útil. Mas a gente precisa avançar na questão da responsabilização. As empresas internacionais que lucram com a questão do trabalho escravo contemporâneo, precisam sim ser finalizadas.

Como o livro se divide para a construção dessa narrativa que vocês conseguiram imprimir à obra?

É importante começar dizendo que essa não é uma obra para bater no governo. Essa é uma obra para contar uma história. É uma obra para contar a história do combate à escravidão contemporânea no Brasil. O Brasil foi vítima de mais de 300 anos de trabalho escravo no modelo colonial e isso nos deixou marcas. Uma parte daquele trabalho escravo que existia naquela época se mantém, não mais por meio da anuência do Estado, mas pela manutenção de situações análogas ao trabalho escravo daquela época. Esse trabalho escravo contemporâneo é alvo de um discussão muito grande dentro da área técnica jurídica. Há muitos juízes, advogados e procuradores que escreveram livros sobre isso. Agora, a questão de como isso se coloca para a sociedade de uma maneira que inclui a questão jurídica, mas não se resume a ela, é o que a gente pretende. A gente conta a história do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, como ele se mantém hoje, baseado no que ele se mantém, a quem ele traz lucratividade, por que na prática ele ainda existe, o que é feito para combater e por que é tão difícil combater o trabalho escravo contemporâneo. Para isso a gente tenta mostrar que o trabalho escravo não é uma doença que tem de ser erradicada porque sobreviveu à evolução do capitalismo. Na verdade, ele acabou se tornando uma ferramenta que determinados empreendimentos, dentro do capitalismo, usam para se expandir e obter maior lucratividade. Não é um desvio do sistema, é uma ferramenta do sistema. O capitalismo se expande encontrando realidades externas a ele e utilizando os recursos dessas realidades. Ele transforma essas formas de exploração e as utiliza não mais no formato antigo, mas em uma lógica de acúmulo. A questão do trabalho escravo contemporâneo é lembrar que ele não é uma doença, ele é um sintoma. O trabalho escravo é sintoma de um modelo de desenvolvimento com problemas. Precisa ser combatida a noção de que é preciso escravizar em nome do progresso e em nome do lucro. Eu tento alinhavar tudo isso com uma discussão conceitual logo no início do livro porque a discussão conceitual ainda é um problema, há quem ache o termo “trabalho escravo” equivocado para o que é flagrado hoje em dia.

Diante dos seus anos de pesquisas, acha que é possível vencer essa barreira ao desenvolvimento que é a continuidade do trabalho escravo?

A gente tem que ser ligeiramente pessimista na análise, mas temos que ser otimistas na ação. Não dá para ficar no otimismo desenfreado, a decepção vem muito rápido. Eu atuo no combate ao trabalho escrevo desde 1999. Não podemos dizer que nada mudou, é quase uma ofensa aos movimentos sociais. Se as coisas mudaram durante esses anos é porque as pessoas resolveram fazer a diferença. O combate ao trabalho escravo mudou nos últimos 25 anos, mas claro que falta muito. A história não é uma linha reta, ela tem conquistas e retrocessos. A história não acabou e nem caminha em linha reta. Talvez a gente não veja o fim do trabalho escravo no mundo no nosso tempo de vida. Zerar o trabalho escravo demanda mudanças estruturais, ele é uma consequência do capitalismo. Mas é possível acabar com o trabalho escravo? É possível sim, mas é preciso continuar a luta. Estamos em meio a um processo de recrudescimento da direita no mundo, com enfraquecimento do estado e o estado é um ator fundamental nesse processo. E não podemos ver a erradicação como uma questão só de fiscalização, uma questão de polícia. Existem milhões de pessoas no mundo que são empurradas para esse tipo de trabalho porque elas não tem outras condições de vida? A gente precisa avançar para melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Passa necessariamente então pelo combate à pobreza?

Sim, mas com muito cuidado para que não se associe pobreza à falta de dinheiro. Isso é um erro. A gente tem que pensar em falta de oportunidades. São pessoas que não conseguem colocar em prática tudo aquilo que elas podem ser exatamente pela falta de garantias como saúde, educação, lazer, cultura, transporte. Garantir uma vida digna. Não é falta de renda, é falta de oportunidade. É falta de um estado que garanta o mínimo para a sobrevivência não só do corpo, mas também do intelecto, da alma.

Escravidão Contemporânea (Editora Contexto) traz textos de especialistas como Mike Dottridge, ex-diretor da Anti-Slavery International; Xavier Plassat que trabalha há mais de três décadas no combate ao trabalho escravo na Amazônia, Kevin Bales, professor na Universidade de Nottingham, Fabiola Mieres, da organização International Labour Organization, entre outros.

O lançamento será no dia 28 de janeiro, na cidade de São Paulo (Livraria da Vila, R. Fradique Coutinho, 915 – Vila Madalena, a partir das 18h30)

 

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