Ontem ouvi no metrô três amigos falando sobre “Bacurau” – filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelas, premiado em Cannes e sucesso instantâneo no Brasil.
Por Nathalí Macedo, Do DCM
Não ouço pessoas falando sobre audiovisual no transporte público desde o último capítulo da novela Avenida Brasil.
Neste momento de trevas, ataques à cultura e elogios convictos à burrice, lotar os cinemas exibindo um filme nacional e fazer com que as pessoas conversem sobre isso é, por si só, um grande serviço que esse filme nos presta, e que está longe de ser o único.
Quando, numa tela de cinema, um sudestino pergunta em uma bodega nordestina “quem nasce em Bacurau é o quê?”, e uma criança bacurauense (?) lhe responde “é gente”, a gente compreende que é a sutileza que move o espectador, e move com uma eficiência que as cenas tarantinescas não alcançariam.
E é assim, transitando entre a sutileza dos diálogos e o exagero de suas cenas tarantinescas que o filme nos convida a nos enxergarmos enquanto povo, a buscarmos alternativas para os dissidentes e formas de resistir.
Mas, se Bacurau se apresenta como um elogio à resistência, de que tipo de resistência estamos falando?
Confesso que também vibrei com o sangue na tela.
Nesse Brasil fascistóide no qual sequer sabemos exatamente quem é o inimigo, quem não vibraria com um grupo de imperialistas sádicos violentamente assassinados no povoado nordestino que tentavam dizimar?
Mas quando a plateia em peso aplaudiu uma cena com três cabeças humanas arrancadas e colocadas em uma calçada enquanto uma senhorinha que poderia ser tia de qualquer um de nós limpava o sangue do chão de sua casa, percebi que havia algo de errado naquela sede sádica coletiva de brasileiros cansados.
Eu sou também uma brasileira cansada, uma nordestina cansada. Exausta. Mas não é isso que eu quero me tornar.
Não é essa a resistência na qual acredito. Eu não quero vibrar com cabeças rolando, eu quero vibrar com Universidades cheias de balbúrdia, cinemas cheios de pessoas comuns e diálogos sutis e tocantes.
Eu não quero precisar recorrer ao Lunga, um neo cangaceiro que, mais do que cansado, estava com fome. Eu também tenho fome, mas não é de sangue ou de cenas tarantinescas, é de resistir com as sutilezas que movem as pessoas.
Eis, portanto, o meu incômodo: sangue na tela não constrói. Ele serve, no máximo, pra nos conferir permissão pra extravasar toda essa sede sádica.
Não me interessa extravasar minha sede sádica, me interessa encontrar caminhos, e Bacurau bem que poderia ter sido um elogio à resistência articulada, que de tão afiada, não precisa de sangue, mas é necessário deixar que os filmes sejam filmes, e não a resposta pronta que a gente espera.
Sendo filmes, eles já são muito.
Não sou crítica de cinema.
Não é meu papel – aliás, não é papel de ninguém – validar um filme, porque a arte nunca precisou de validação, mas que bom que, sem pretensões de validá-lo ou invalidá-lo, ainda podemos falar sobre ele, e reconhecer nele o que queremos e o que não queremos para nós mesmos.
Que bom que eu posso me permitir sentir incômodo com um filme aclamado pela esquerda, mesmo sendo eu de esquerda – sobretudo sendo eu de esquerda.
Porque, escrevendo sobre o filme, eu faço com que ainda mais pessoas vejam o filme, falem sobre o filme, ressignifiquem o filme e transformem seus incômodos em catarses.
Este, acredito, é o nosso papel enquanto entusiastas da arte e de um país melhor: ajudar a mover o cinema (e a literatura, e a música) da bolha classe-média-enjoada-com-pinta-de-artista para as discussões de metrô, as mesas de bar, os blogs e timelines.
Viva o povo no cinema!