Se é negro, é negão, mas se é branco é brancão? Sobre a brutalização do homem negro

Este aumentativo para se referir aos homens negros sempre me incomodou muito, sobretudo, quanto passei a estar atenta ao racismo e às suas sutis formas de manifestação. Mas tudo começou a fazer mais sentido após os meus estudos de doutorado sobre a construção dos corpos pela ideologia racista. É a brutalização do homem negro

Eu fui socializada com homens negros na minha família e na periferia de Belo Horizonte e inúmeros deles eram chamados de “Negão”, enquanto homens brancos, no máximo, de “Carlão”, “Betão” etc..

Brutalização do homem negro

O corpo do homem negro foi construído pela ideologia racista como um corpo a ser temido, corpo onde habita a violência e a fúria. Tudo nele foi aumentado e exagerado, causando a brutalização do homem negro: sua força física, sua brutalidade, tamanho, bem como seu órgão genital.

A construção da hipersexualidade dos homens negros foi um elemento inventado pela supremacia branca para justificar o controle sobre esses corpos, dando origem ao mito do “violador” por natureza, como aponta bell hooks, em “We real cool. Black men and masculinity”.

O homem negro é ligado ao “forte, grande, estúpido, cujo pênis é o orgão que o identifica, aponta também Patricia Hill Collins em “Black sexual politics african americans, gender, and the new racism”. E a autora continua dizendo que o homem negro não é amado, mas construído como selvagem, mais perto da natureza que da razão, naturalmente mais propenso ao sexo que ao amor. Essa imagem do homem negro é marcada desde a infância e, para o capitalismo patriarcal supremacista branco, o negro é o “bruto indomável, incivilizado, que não sabe refletir e insensível”, diz Hill Collins.

brutalização do homem negro
Reprodução YouTube

Representações Raciais

Uma das representações do homem negro, nos séculos XVIII e XIX é aquela de violador de mulheres brancas. Essa representação e esse estereόtipo são usados ainda hoje para dividir a população e despertar antigos imaginários, mas, sobretudo, desumanizar homens negros para melhor explorá-los e, quando não são mais úteis, exterminá-los.

Quando ligamos a televisão ou lemos os jornais sobre crime e criminalidade, quais os rostos e os corpos são estampados ou exibidos? Na grande maioria, aqueles dos homens negros, corroborando a ideia de que esses cometem mais crimes do que homens brancos e que são mais violentos e perigosos. Novamente chegamos na brutalização do homem negro.

A questão é que o racismo institucional, impregnado nos meios de comunicação e nos agentes que produzem mídias, trata os corpos brancos e os negros de maneira dicotômica, ou seja, os dos homens brancos das camadas privilegiadas, exigem o direito à privacidade de imagens, conseguem abafar os casos de crimes através do tráfico de influência e do capital econômico ou não aparecem por não estarem dentro de um imaginário popular onde crime e bandidagem são ligados aos negros e pobres; corpos brancos das camadas privilegiadas são excluídos das mídias para se falar da criminalidade quotidiana.

Por isso, a mídia hegemônica continua produzindo e reproduzindo a imagem do homem negro de forma brutalizada, dando de bandeja ao Estado a desculpa para a aplicação da Necropolítica.

A Associação Americana de Psicologia publicou, em 2017, os resultados de uma pesquisa com corpos de homens brancos e negros e para a maioria dos pesquisados, o corpo do homem negro, embora do mesmo tamanho e peso que aquele do homem branco, parecia maior para as pessoas.

John Paul Wilson, um dos pesquisadores da Universidade de Montclair, nos Estados Unidos, disse a respeito: “Homens negros desarmados têm uma probabilidade desproporcionalmente maior de serem baleados e mortos pela polícia, e muitas vezes esses assassinatos são acompanhados de explicações que citam o tamanho físico da pessoa baleada”.

Isso acontece porque o racismo é um processo tão violento que tem o poder até mesmo de incidir sobre a percepção da realidade, negando-a ou alterando-a. A categoria raça, combinada a altura, peso e gênero, pode influenciar julgamentos e reações. E vou ilustrar isso através de um diálogo que tive com uma prima, mulher branca, do interior de Minas.

Certa vez ela justificou o fato de não gostar de homens negros porque, quando criança, caminhando pelas ruas de uma cidade onde fora de férias, um homem negro a agarrou em um dos becos e tocou sua genitália. Conhecendo sua histόria e sabendo que ela também havia sido abusada na infância pelo cunhado, marido de sua irmã, lhe indaguei: “Mas e o fato do fulano ser branco, você não odeia homens brancos?” Silêncio.

O racismo direciona nossos gostos, nossas escolhas e nossa ênfase nos corpos negros. O racismo incide na construção da realidade de forma tão equivocada e perversa que as pessoas acreditam veementemente nas coisas que lhes parecem “όbvias”, porque foram construídas como tais. O “όbvio” é a leitura mais rasa e imediata que os sujeitos fazem, por exemplo, quando um negro se aproxima ou caminha atrás de alguém, já ouvi explicações de que o “instinto” é se afastar, segurar a bolsa e se proteger. Isso é o que o racismo faz com as pessoas, transforma o socialmente construído em “natureza”, “instinto”, “gosto” pessoal.

O Center on Poverty and Inequality (Centro sobre Pobreza e Desigualdade, 2017) Georgetown Law, em 2017, divulgou os resultados de uma pesquisa mostrando como meninas negras são consideradas menos inocentes do que as brancas. Isso está ligado à “adultificação” (“adultification”), que começa ao redor dos cinco anos de idade, mais cedo ainda do que a idade para meninos negros.

Os meninos negros, por sua vez, são desde muito cedo associados ao perigo e à criminalidade, como no caso do menino Tamir Rice, de 12 anos, nos Estados Unidos, assassinado por um policial branco porque portava uma arma de brinquedo.

Em depoimento, o policial que atirou em Tamir disse que se sentiu ameaçado e que o menino foi em sua direção como se fosse o Incrível Hulk (personagem de um filme onde um homem se transforma aumentado de tamanho, ganhando uma força imensurável e tornando-se verde).

O mais incrível nessa histόria não foi o exagero no depoimento de um agente de polícia, armado e acompanhado por outro policial, mas a normalidade com que a Corte não sό aceitou o depoimento como absolveu os dois policiais.

Imagem retirada do site newsome.com

E no Brasil temos um exemplo brutal de como uma criança negra, de apenas 5 anos é vista pela branquitude, representada pela patroa da mãe da criança, Miguel, com aquele corpinho e cabecinha que exigem proteção, foi colocado sozinho em um elevador com dezenas de botões por uma mulher que sequer cogitou a ideia de que ele não podia ser abandonado daquela forma. Foi racismo!

Os meninos negros sentem essa falta de proteção desde muito cedo, dentro e fora das famílias, o julgamento e o desprezo da sociedade. Quantas crianças em situação de rua se aproximam de alguém e o “instinto” é se afastar, quando não, pedir a morte, o linchamento e o desaparecimento deles das ruas e cidades brasileiras!

Eu tenho um amigo que me contou que aos 11 anos de idade, caminhando pelas ruas de Recife, ouvira alguém o chamar da seguinte forma: “Ei, grandão!” Sem se reconhecer nessas palavras, ele continuou caminhando, pois ele era muito magro e pequeno. Mas a voz o seguiu e insistiu até que ele se girasse. Crescendo, ele também notou que se estiver em um lugar com outros homens brancos e alguém precisar carregar caixas, arrastar coisas, é a ele que se dirigem.

Homens negros não são vistos pelo que são, não podem se dar ao luxo de serem amorosos, ternos, delicados, tampouco nerds, pois a sociedade, desde cedo, lhes impõe uma imagem, um modo de agir e de sentir que muitos, por repetição ou por falta de instrumentos para combater esses estereótipos, acabam incorporando.

Sobre a brutalização do homem negro, já ouvi muitas pessoas justificarem o tratamento brutal para com homens negros assim: “Mas eles mesmos se chamam assim”, ou “eles gostam e até riem”. Judith Butler sobre isso diz:

Chamado por um nome ofensivo, me torno um ser social. E porque tenho um certo e inevitável vínculo com a minha existência, porque um certo narcisismo se apodera de qualquer termo que me ofende, sou levada a adotar os termos que me ofendem porque eles me constituem socialmente.

O racismo é estrutural, mas as estruturas não saem por aí caminhando, agindo e se relacionando, as pessoas, sim, e identificar comportamentos racistas em quem estimamos e nos relacionamentos é muito mais difícil, principalmente quando devemos confrontá-las.

Em 2014 quando eu morava no interior de São Paulo, recebi a visita de uma amiga goiana em casa. Ela estava à procura de relacionamento e se inscreveu no Tinder. Um dia, enquanto eu preparava o almoço, senti suas risadas na sala e fui ver do que se tratava. Ao perguntar, ela respondeu: “menina, dei Match aqui com um negão”. Eu, séria, lhe perguntei: “E?” Vendo que eu não sorri e entrei na “brincadeira”, ela mudou o semblante e, constrangida, disse: “Eu não gosto de homens negros, isso é questão de gosto, não tem nada a ver com racismo”. Ela já foi logo se defendendo para não ser acusada de racista.

Quando as pessoas entenderam que gostar de cor e não de pessoas é racismo sim, as coisas mudam. Como diz bell hooks em “Olhares Negros”, “amar a negritude é perigoso em uma cultura supremacista branca.

Por fim, termino com um desabado de um homem negro

Ser preto numa sociedade supremacista branca é lutar todo o tempo para se auto-definir e subverter o lugar exclusivo de subalternidade construído pela colonialidade e atualizado pela branquitude.

Quantas vezes não me perguntaram se eu cantava pagode; se eu tocava um pandeiro; se jogava futebol?

Quantas vezes não fui objetificado como mero instrumento de fetiche? Como amante selvagem, potencialmente roludo e bom de cama?

Quantas vezes duvidaram da minha capacidade intelectual?

Quantas vezes não recebi convites para fazer trabalhos braçais? Quantas vezes não fui interpretado como preguiçoso?

Quantas não duvidaram da minha honestidade?

Precisamos olhar para o nosso ‘eu’ nos despindo das lentes da branquitude. Reapropriar do controle sobre as nossas identidades. Nos livrarmos do que não nos pertence. Enxergar também em nossos irmãos a beleza, a singularidade e humanidade que muitos já se esqueceram de haver em si mesmos. Antes mesmo de eu me apresentar, vocês querem dizer quem eu sou.

(Pedro Lima, publicitário, 33 anos, natural do Pernambuco)

Fabiane Albuquerque
(Arquivo Pessoal)

Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia e Feminista Negra

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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